A Congada no Brasil começou assim…

Para o doutor em História cultural e pesquisador da festa do Rosário desde 1990, Cairo Mohamad Ibrahim Katrib, a Congada é uma prática cultural bastante significativa dentro das manifestações que representam a identidade plural dos brasileiros. Pensando nisso, o Blog da Maysa Abrão, postará toda semana, até o fim do mês de outubro, uma informação nova sobre a congada que chegou ao Brasil com os primeiros negros escravizados, por volta do século XVI e foi ganhando contornos culturais, religiosos e festivos mesclando práticas católicas às trazidas pelos diferentes povos africanos em diferentes contextos históricos.

Para começar, Cairo Mohamad Ibrahim Katrib, nos conta como teve inicio a Congada no Brasil.

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FOTO: Festa de Congados de Nossa Senhora do Rosário. Fotógrafo:José Severino Soares Ano:1889 Acervo: Arquivo Público Mineiro.

 

                                                                                 

A Congada no Brasil começou assim…

 

Por Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

Doutor em História cultural – UNB

Docente da Universidade Federal de Uberlândia – Faculdade de Educação

 

 

[…] quando os negros viviam na senzala e o fidalgo

senhor queria saber o que é que eles faziam;

então, ajuntaram-se os padres para colher os

segredos dos negros. O que o negro fazia durante

o dia, o senhor estava vendo, estava ouvindo; o

que ele fazia fora de hora, à noite na senzala, o

senhor não sabia.[…]1

 

 

As Congadas são objetos de estudo de vários folcloristas, sociólogos, antropólogos, entre outros.2 Muitos deles valorizam esse tipo de manifestação como parte do folclore brasileiro, sem se preocupar com sua dinamicidade, se apegando meramente ao entendimento dos rituais ou dos festejos de forma isolada de sua totalidade e da ação dos sujeitos que a movimentam, lhe dão vida e a atualizam.

No contexto da cultura popular, as Congadas acontecem em várias regiões do país de forma diferenciada. Em algumas se mantêm vivas por pequenos grupos que persistem todos os anos em viver essa prática cultural, mas em outros, ela ganha uma dinamicidade expressiva, fazendo com que durante o período dos festejos os sujeitos e a própria cidade passem a viver em função de sua realização, como acontece em Catalão-GO.

A Congada é em síntese, uma manifestação cultural marcada pela persistência e resistência da cultura negra de se manter viva associada não somente a passagens históricas ou lendas que compõem o imaginário da civilização ocidental; ela se constitui em sua essência pela espiritualidade advinda de religiões africanas, como o Candomblé e a Umbanda.

Segundo Volney J. Berkenbrock3, a forte presença do negro no Brasil fez com que o país passasse a ter uma variedade cultural muito grande, trazida, em grande parte, pelos negros para o Brasil durante o momento de escravização, principalmente nos três últimos séculos desse período. Os negros provinham de diferentes lugares da África, com culturas bastante diversificadas e com a quebra do vínculo cultural entre membros de uma mesma região, ocorreu o dilaceramento de muitos costumes e tradições entre esses povos, revividos, adormecidos ou silenciados mais tarde pelos seus descendentes.

As Congadas são também manifestações que passam a ser consumidas como cultura de massas e como entretenimento. A história da Congada enquanto prática da cultura e da religiosidade negra sofreu um processo de “domesticação” e de “folclorização”, divulgadas pela cultura de massa, reforçando o sentido turístico dela enquanto espetáculo exótico. Mas o exótico mascara o sentido hibrido dessa manifestação, inebria os olhos dos sujeitos distantes, escondendo que é também expressão de vida, ato de fé, religiosidade e adoração, comoção e veneração de Deus. Força de vida.

Para Marlyse Meyer4, a fragmentação desse tipo de manifestação cultural, inserida num contexto folclórico ou como elemento simplista da cultura popular, é fruto da visão fragmentada do colonizador perante a pujança cultural que se deu com a formação do povo brasileiro.

Se a identidade do povo brasileiro se formou de uma interligação de crenças, hábitos, costumes e culturas, para muitos estudiosos a origem das Congadas no Brasil associa-se à vinda dos povos africanos de origem Banta5, oriundo das regiões do Congo, Moçambique, Mina, Angola, entre outras, que no Brasil foram escravizados para servirem de mão de obra nas lavouras de cana de açúcar, na mineração, entre outras atividades6. Outros dizem representar a luta entre reinos rivais africanos, ou seja, entre os reinos comandados pelo Rei Coriongo e pela Rainha Ginga. Algumas versões ainda apontam que as Congadas expressam a luta entre mouros e cristãos na França7. Dedutivo disso afirma-se também que dessa luta resultou o aparecimento de duas manifestações representativas desse mesmo acontecimento: as cavalhadas, adotadas pelos nobres e as Congadas introduzidas entre os escravos como forma de amenizar as diferenças étnicas, seu espírito de revolta. Por fim, existem aqueles que se firmam no imaginário popular, afirmando com base nisso, ser as Congadas a representação da Corte de Chico Rei que, após encontrar ouro numa mina abandonada em Minas Gerais, comprou a sua liberdade e a de vários negros e como forma de comemoração saíram as ruas festejando tal intento e daí se fixando enquanto tradição. Acompanhavam a corte de Chico-Rei, muitos negros que tocavam e dançavam agradecendo pela libertação alcançada inclusive, construindo uma capela em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e a Santa Efigênia como forma de agradecimento.

Mesmo diante de tantas histórias, não podemos deixar de enfatizar que a Congada ou o Congado, como é conhecido em muitas cidades do interior de Minas Gerais é uma vivência que interage vida, fé, devoção, festa e simbolismo, hoje com nítida interferência da cultura de massa. Isso não que dizer que a Congada seja um mero acontecimento folclórico, paralisado no tempo sem sofrer alterações. As modificações são visíveis desde as músicas aos complementos das fardas dos dançadores. E é justamente isso que sustenta a resistência desses grupos e a persistência em manter viva a cultura afro-brasileira, cuja evidência articula elos entre o mundo real e o sobrenatural, ou seja, a fé, a tradição se reatualizam e atualizam todos os anos através da participação dos diferentes sujeitos que ano após ano, durante os seus 365 dias, vivem a festa de forma dinâmica. Catalão-GO, tem sua história associada à realização da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário, que a cada ano vê aumentando o número de ternos de congo.

Numa retrospectiva histórica, estudiosos da cultura negra reforçam a necessidade da conversão do negro para dominá-los efetivamente. Os negros que foram escravizados e trazidos para o Brasil a partir do século XVI, conforme nos esclarece Reginaldo Prandi8, somavam mais de cinco bilhões, não estando incluídos neste número, os que morreram no trajeto da África para a colônia brasileira vitimados pelos maus tratos. Um outro fator interessante destacado por este pesquisador remete ao fato de que grandes números de africanos de tribos rivais foram aprisionados e se tornaram escravos passando a conviver nas capitanias e províncias.

Ocorreu assim, uma multiplicidade de etnias, nações, línguas, costumes e culturas entre os negros, o que, de certo modo, era para os senhores de escravos uma ameaça, um medo por perder mão de obra, já que a convivência de tribos rivais num mesmo espaço gerava conflitos, representando prejuízo aos seus proprietários.9 Dessa maneira, na visão de Prandi, os escravos provinham de onde fosse mais fácil capturá-los e de onde era mais rendoso embarcá-los. Tal fato pode ser comprovado se analisarmos as descrições contidas no romance de Agripa Vasconcelos10 intitulado “Chico Rei”. Nessa obra o autor enfatiza a rivalidade entre tribos africanas e a prática do aprisionamento utilizada. Segundo o romance, existia no território africano a rivalidade entre várias tribos em virtude da prática de cultos ancestrais, atividades desenvolvidas, espírito guerreiro, entre tantos outros fatores. Com a chegada do europeu no território africano e com a necessidade de se intensificar o processo de colonização, os portugueses iam, aos poucos, conquistando a confiança de determinados grupos ou tribos, catequizando-os e incitando à rivalidade com outras tribos com o intuito de gerar desavenças, conflitos para facilitar o aprisionamento destes, fornecendo até armas para que as tribos pudessem promover as suas guerras internas.  Dessa forma, conseguiram desestruturar reinos, infiltrar nas tribos, ganhar a confiança dos negros para, em seguida, aprisioná-los.

Se levarmos em consideração essas afirmativas veremos que as suposições descritas acima, a respeito da origem da Congada no Brasil faz sentido. A chegada dos africanos ao Brasil se dá, sobretudo, nos primeiros dois séculos do tráfico. Vieram com maior frequência africanos bantos, seguidos posteriormente, por sudaneses devido a facilidade de aprisionamento desses povos. Tivemos no século XVIII grande parte da população negra incorporada à população do Brasil. Eram pertencentes a essas tribos e serviram de mão de obra nos engenhos de açúcar de Pernambuco e Bahia. Com a estagnação desse tipo de atividade, muitos deles passaram a trabalhar nas Minas de ouro descobertas em Minas Gerais.

A inserção da cultura negra à cultura local iniciou-se tímida em virtude da não aceitação dos cultos africanos pelos senhores de escravos e igreja católica, uma vez que esta bania severamente tais práticas por destoarem dos preceitos religiosos adotados no país e dos padrões religiosos impostos pelo Vaticano. A dinamicidade cultural dos negros escravos no Brasil é fruto de sua cultura e das condições impostas que obrigavam os negros a adorarem elementos da prática católica.

Entre as representações da religiosidade e da cultura africana, a Congada é uma manifestação cultural, tipicamente brasileira. Laycer Tomaz afirma que, a Congada encontrou no sincretismo religioso um meio de resistir ao domínio e à imposição etnocêntrica dos valores culturais e religiosos do homem branco. Assim, expressões como a Congada, os povos negros trazidos para o Brasil, e aqui barbaramente subjugados, sustentaram sua fé com a argumentação de seus rituais religiosos11.

Os estudos de Ronaldo Vainfas e Juliana Beatriz de Souza12 demonstram que o processo dinâmico da cultura negra incorporada à cultura brasileira por meio das práticas da religiosidade católica como a adoração a Nossa senhora do Rosário é bastante presente no país. Segundo esses historiadores, a religiosidade no Brasil, desde os tempos da Colônia, permite compreender os condicionantes que fizeram do Brasil um país católico. Para Vainfas e Souza, os negros de origem banta principalmente os de Angola e os do Congo foram mais receptivos aos cultos de adoração a Virgem do Rosário porque mantinham um contanto anterior com esse tipo de adoração no continente africano em virtude da constante presença dos colonizadores e de suas tentativas de convertê-los ao catolicismo. Foi através do culto à Senhora do Rosário, que os negros rearticularam suas crenças, reinterpretando os rituais de devotamento ao rosário.

A devoção a Santa do Rosário, conforme destaca Souza, provém dos cultos e das rezas proferidas pelos negros à divindade Ifá. O que nos faz compreender a devoção Mariana desenvolvida em Portugal e disseminada pelas colônias portuguesas como África e Brasil. Todavia foi no Brasil em que tivemos uma maior expressividade desse culto, principalmente entre os escravos. Essas práticas de adoração iniciaram-se nos engenhos, proliferando pelo interior do país com o ciclo da mineração, principalmente nas cidades em que essa atividade foi evidente como em Minas Gerais. De Minas as tradições e as manifestações da cultura negra se espalharam por outras cidades de outros estados como é o caso de Catalão-GO.

 

 

1 TOMAZ, Laycer. Da Senzala à Capela. Brasília: Editora UNB. 2000. p.21.

3 BERKENBROCK, Volney J. A Festa nas Religiões Afro-brasileiras: a verdade torna-se realidade. In: A Festa Na vida – Significados e Imagens. Petrópolis:Vozes, 2002. p.191-223.

4  MEYER, Marlyse. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2000. p.148.

5  Segundo PRANDI, o termo “Banto” foi criado em 1862 pelo filólogo alemão Wellelm Bleek e significa “o povo”, não existindo propriamente uma unidade banta na África.  No Brasil, estudos diversos nos revelam que os Bantos que vieram para o país, são africanos provenientes do Congo e de Angola.

6 Cf. A respeito da origem dos negros que vieram para o Brasil conferir os estudos realizados por: VASCONCELOS, Agripa. Chico Rei. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Brasília:Editora UNB, 1982.

SILVA, José Carlos Gomes da. Negros em Uberlândia e a construção da Congada: Um estudo sobre o Ritual e Segregação Urbana(1940-1970). Uberlândia: UFU/FAPEMIG SHA, 1996.

SILVA, Rubens Alves da. Congada em Dores de Indaiá-MG. Belo Horizonte: UFMG/Deptº de Sociologia, 1999.(dissertação de mestrado).

LUCAS, Glaura. Os Sons do Rosário Um estudo Etnomusiológico do Congado Mineiro – Arturos e jatobá. São Paulo: USP/ECA, 1999.

TOMAZ, Laycer. op. cit.

MILITÃO, Andréia Nunes. Devotos da Cor: as festas religiosas de São Benedito na cidade de Guaratinguetá, SP. Franca: UNESP, 2001.

RUSSEL-WOOD, A.J.R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial. Revista Tempo: Rio de janeiro: Letras, nº 12, 2001.

SOUZA, Marina de Melo e. Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

7 MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2ª ed., Belo Horizonte: UFMG, 1991.

MEYER, Marlise. Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo:EDUSP, 2000.

8 PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. São Paulo: Revista USP, nº 46, junho-agosto, 2000. p. 52-65.

9 BERKENBROCK, Volney J. A Festa nas Religiões Afro-brasileiras: a verdade torna-se realidade.  In: PASSOS, M. A Festas na Vida-Significados e Imagens. Petrópolis:Vozes, 2002. p.191-223.

10  VASCONCELOS, A . op.cit.

11  TOMAZ, Laycer. Op Cit. P. 21.

12 VAINFAS, Ronaldo e SOUZA Juliana Beatriz de. Brasil de Todos os Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

 

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FOTO: Congado de Minas Gerais, Brazil, 1876

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FOTO: A Congada de São Benedito se repete há mais de 200 anos em Ilhabela, SP

http://www.ilhabelastyle.com.br/origem-cult/

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FOTO: Congadeiros – Congada de Sainha – Santo Antonio da Alegria – São Paulo

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FOTO: Festa de Nossa Senhora do Rosário – Congada – em Jaguaraçu, Minas Gerais, 2011 – Foto: Jorge Quintão – Imaginário Coletivo

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FOTO: Congada do Rosário na cidade de Mogi das Cruzes no distrito de Sabáuna em 1966

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FOTO: (Festa de Nossa Senhora do Rosário – Congada – em Jaguaraçu, Minas Gerais, 2011 – Foto: Jorge Quintão – Imaginário Coletivo)

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FOTO: Dançador Rodrigo Salles, do Moçambique Santa Efigenia, de Ouro Preto, MG. FOTO: Zedu Monte – Imagens e Textos

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Congada de Ouro Preto, MG. FOTO: Jose Eduardo Carvalho Monte 

 

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