Memórias de um Peregrino – 11. Caminho de Santiago

11. O AMOR NO CAMINHO

Dizem os espanhóis que com pan y vino se hace el camino. Embora não faça parte do cardápio, ao longo da peregrinação a libido persiste e o corpo deseja, também, outro tipo de alimento.

Em Los Arcos, eu conversava com os rapazes brasileiros quando um deles reclamou, dizendo que as meninas do Caminho não queriam saber de sexo. Parecia que as garotas faziam promessa de abstinência durante a caminhada, comentou. Eu lhe disse, então, em tom de brincadeira, que, até Santiago, ele iria escalar apenas os montes.

Rimos muito, mas, de fato, com promessa ou não, no Caminho o interesse e a prática sexual reduzem-se drasticamente. O próprio cansaço se encarrega de serenar os ânimos. As longas jornadas diárias sob um forte sol de verão absorvem praticamente toda a energia dos peregrinos. Após a chegada ao refúgio, ainda se tem a rotina diária de banhar-se, lavar a roupa e curar as bolhas, que não poupam praticamente ninguém. Em seguida, dá-se uma volta pela cidade, providencia-se um jantar e, depois, cama, porque o repouso é essencial.

Dependendo da jornada e da inspiração, pode-se até pensar: bem, com algum jeitinho encontra-se espaço para o amor. Mas, infelizmente, os albergues não oferecem nenhuma privacidade. A grande maioria dos alojamentos se localiza em galpões, cujas camas são alinhadas lado a lado, respeitados os corredores. Claro que, conforme a lotação do albergue, acaba-se achando um espaço para o amor. Mas, convenhamos, não é fácil.

No albergue de Burgos, ao iniciar a arrumação de minha cama, na parte inferior de um beliche, percebi que um jovem casal de italianos, já conhecido, também estava ocupado com o arranjo do beliche vizinho ao meu. Ele na cama de cima, ela na de baixo. Eu iria ficar ao lado da bela ragazza, enquanto ele ficaria na cama superior. Apesar da tentação, não foi naquela noite que o diabo dormiu ao lado. Achei mais prudente propor a ele a troca de camas. O rapaz agradeceu muito, mas com o albergue lotadíssimo e a vizinhança no andar superior…

Alguns casais preferem, ao menos eventualmente, o recanto confortável e discreto dos hotéis. E casais apaixonados contam com a cumplicidade dos bosques às vezes existentes nas trilhas. Mas, em Santiago… Bem, em Santiago, cumprida a peregrinação e depois de uma boa temporada de abstinência, os romances vislumbrados, iniciados ou fortalecidos durante a caminhada, clamam pela consumação. É um tal de perguntar: você viu a fulana? Você viu o fulano? Os bares e restaurantes ficam lotados de casais enamorados. Em Santiago os hotéis e pensões, apesar de mais caros, são claramente preferidos pelos peregrinos, em detrimento dos albergues.

Contudo, também há casais que descobrem, durante a peregrinação, que seus caminhos na verdade não se cruzam, segundo relatam os boatos das trilhas. Tristeza para uns, libertação para outros, a vida segue adiante, oferecendo a todos oportunidade para crescer. Solitários ou acompanhados, o que mais importa é cada um fazer o seu verdadeiro caminho.

Para outros peregrinos, a abstinência da carne é uma opção, parte de uma proposta mística ou de autodomínio. Optam por ela interessados em direcionar a energia vital para o crescimento espiritual, ao menos durante a experiência jacobina, tipo de prática comum em diversas crenças ou filosofias.

Em nosso mundo sensual, é rara a arte de sublimar o desejo sexual – uma manifestação esplendorosa, instintiva e enraizada em nosso ser. Mas, geralmente, é um duro exercício durante a peregrinação, opcionalmente ou não. Apesar das distintas maneiras de cada um reagir à questão, a experiência coloca o peregrino em contato com um processo eficaz de humanização e autodomínio, importante para que não nos tornemos reféns da luxúria. Sabermos valorizar-nos, buscarmos o amor no momento certo, sem a necessidade de mendigarmos a atenção e o afeto de outrem. Para que não nos tornemos escravos do desejo, viciados em sexo, eternamente insatisfeitos, expostos, frágeis, inconvenientes, carentes e infelizes, como muitas vezes nos sentimos. Situações tão propícias a uma rejeição e à consequente auto depreciação.

Isso não significa uma apologia ao enclausuramento. Afinal, cobra que não anda não come sapo, conforme se diz. Apesar de nesse tema o mais importante ser a qualidade, não há controle qualitativo que resista à persistente escassez. E a solidão pode, também, camuflar processos interiores da própria não aceitação. Ou estar ligada a mecanismo de idealização, processo mitológico profundamente arraigado na cultura ocidental.

A busca do outro é uma luta constante para o homem, esse ser dividido. Portanto, nas paradas do caminho, que os prazeres da alcova lhe satisfaçam o corpo e alegrem o espírito. Todavia, cuide-se para que isso não lhe custe a cabeça.

FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

 

 

 

 

 

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