Memórias de um Peregrino – 12. A Fortaleza do Rio

Depois de 27 km de caminhada, no dia seguinte alcancei a famosa Logroño, sem problemas, num trecho com pequenas ondulações. Passei por Sansol, Torres del Rio e Viana, pueblos medievais encantadores, com ruazinhas estreitas e pórtico de entrada. Locais onde o tempo parece ter estacionado centenas de anos atrás. Já me encontrava em La Rioja, região produtora de um vinho de excelente qualidade, o melhor que experimentei na Espanha.

Uma cidade de tamanho médio, Logroño tem uma enorme e bela catedral em seu centro medieval, em torno da qual, como em quase todos os lugares do Caminho, há uma praça rodeada por bares e restaurantes. No verão, o local torna-se ótimo ponto de encontro, tanto para moradores como para os turistas, posicionados em mesas colocadas nas varandas ou nas calçadas, nos finais de tardes, compondo um belo ambiente.

Logroño significa exatamente local de passagem. Uma passagem sobre o Rio Ebro, antigamente um difícil obstáculo para os peregrinos. Problema que exigiu a construção de uma ponte, acompanhada de uma fortaleza para protegê-la, pois o local ganhou importância estratégica e passou a ser palco de seguidas disputas militares. A segurança da área e o movimento dos peregrinos atraíram moradores e sustentaram a formação e o crescimento da cidade.

A história de Logroño, com mais de mil anos de existência, confunde-se com a história da própria peregrinação a Santiago, situação similar a inúmeras localidades situadas às margens do Caminho. Mas, hoje, a cidade é um importante polo industrial e, como em todas as cidades maiores, os peregrinos confundem-se com os demais turistas, provocando certo desapontamento.

Hospedei-me em um albergue situado no centro da cidade, e, pela primeira vez, mesmo usando calça comprida e duas camisetas, senti frio durante a madrugada.

Alcancei Nájera no dia seguinte, depois de uma longa caminhada, por uma região mais plana, num percurso de 25 km, sem contar cerca de 2 km dentro da própria cidade. Nas cercanias de Nájera, escrito num muro, ao lado da trilha, encontrei um belo poema, cuja autoria é atribuída ao padre Eugenio Garibay Baños, pároco de Homillejas, segundo consta do roteiro de viagem El Camino de Santiago – Ruas a Pie, editado por El País Aguilar, 1993:

Polvo, barro, sol e lluvia
Es Camino de Santiago
Millares de peregrinos,
Y mas de um millón de años
Peregrino, ¿quién te llama?
Ni el Campo de las Estrellas
Ni las grandes catedrales.
No es la bravura navarra,
Ni el vino de los riojanos,
Ni los mariscos galegos,
Ni los campos castellanos.
Peregrino, ¿quién te llama?
¿Qué fuerza oculta te atrae?
Ni las gentes del camino
Ni las costumbres rurales
No es la historia y la cultura,
Ni el gallo de la Calzada
Ni el Palácio de Gaudí
Ni el Castello Ponferrada
Todo lo veo al passar
Y es um gozo verlo todo
Mas la voz que a mí me llama
La siento mucho más hondo.
La fuerza que a mí me empuja,
La fuerza que a mí me atrae
No sé ni explicarla ni yo
İSólo El de Arriba lo sabe!

Nájera é grande e bela, aos pés de uma serra bem árida, quase sem vegetação, que altera sua cor conforme a inclinação do sol. Apesar de bonito e bem localizado – fica no centro medieval da cidade e faz parte de um monastério – o antigo albergue é muito pequeno, e, mesmo tendo chegado pouco após meio-dia, não encontrei vaga.

A procura por hospedagem, nos hotéis da redondeza, também foi infrutífera e, pela primeira e única vez, refugiei-me no Polideportivo, onde dormiria sobre a minha esteira estendida no piso da quadra de esportes.
Com toda a tarde livre, aproveitei para conhecer o centro da cidade e enviar postais para os amigos e parentes. Jantei em um bom restaurante, acompanhada por Inocencia, uma espanhola com a qual eu sempre me encontrada pelo Caminho. Disse-me pretender passar uma temporada no Brasil, trabalhando com meninos de rua. Simpática, entendia muito bem o meu português, recheado com algumas palavras em espanhol.

Santo Domingo de La Calzada, com uns 6.000 habitantes, foi a parada seguinte. Elevada à categoria de cidade em 1113, ela cresceu em torno de um refúgio construído pelo ermitão que lhe deu o nome, com o intuito de ajudar os peregrinos, dos quais tornou-se um dos patronos. Ele foi um grande construtor de pontes e abridor de trilhas, apesar de haver os que reprovam os desmatamentos que realizou, com o objetivo de proteger os caminhantes dos assaltos. Calzada, no castelhano antigo, significaria rota, estrada ou caminho. Quase o mesmo que em português.

O Sepulcro de Santo Domingo fica na própria Catedral, onde também são expostos um galo e uma galinha, renovados mensalmente, lembrando uma lenda local.

Hospedei-me em um monastério de madres, antigo e confortável, que também dispunha de um excelente restaurante. Lá, sem trocadilho, comi como um padre. Foi a melhor refeição que fiz no Caminho, pela qual paguei apenas 1.000 pesetas.

Lá mesmo comprei camisetas com temas do Caminho de Santiago, feitas com uma finíssima malha de algodão, muito leve, fácil de lavar e secar. Comprei duas e descartei as camisetas de mangas curtas que trazia do Brasil. Não consegui encontrar um saco de dormir, apesar de a cidade ter um comércio bem sofisticado.

Assisti a uma missa na capela do monastério, com o belo acompanhamento de um coral de monjas. O local lembrou-me o Colégio Nossa Senhora Mãe de Deus, existente em Catalão, a minha cidade natal. Fundado no início do século passado, o educandário, pertencente à Ordem das Agostinianas, na minha infância era administrado por religiosas espanholas. Hoje, disse-me uma das monjas, há poucas vocações religiosas na Espanha, fato que inviabiliza o envio de freiras para o exterior.

Na caminhada entre Nájera e Santo Domingo, meus pés apresentaram as primeiras bolhas, nos locais de contato das correias da sandália com o polegar, decorrentes da maior fricção que a grande ondulação do terreno provocou. Ou, talvez, por ter feito o percurso muito rapidamente, pois necessitava encontrar um banco aberto (fecham às 14h). Mas o esforço foi em vão, pois não cheguei a tempo, situação que me obrigou a trocar alguns dólares no próprio comércio, com base em cotação inferior à praticada pelos bancos.

FOTO: Logroño

FOTO: Catedral de Santo Domingo da estrada

FOTO: Nájera

FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

 

 

 

 

 

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