Memórias de um Peregrino – ENVIADAS PELO SANTO

Desolado, já pensava em desistir da carona e hospedar-me no albergue, quando parou um carro. Estava ocupado por quatro mulheres, como que a ironizar meus pensamentos. Peguei rapidamente a mochila no meio do mato e apresentei-me a elas, explicando a situação, falando em espanhol. A que estava ao volante respondeu-me, na mesma língua, que o carro estava lotado, e que não poderiam ajudar-me, pois a mochila não caberia no carro. Resignado, já me afastava, quando a mulher, talvez por ter visto a bandeira brasileira na minha mochila, quando me voltei, perguntou-me se eu era brasileiro. Ao ouvir minha resposta, ela disse:

– Nós também somos! Vamos te levar! Daremos um jeito!

Foi uma alegria geral e seguimos com destino a Sahagún, já na província de León. Por absoluta falta de espaço, levei a mochila no colo. Enquanto vencíamos os 15 km até Sahagún (lê-se Xagun), expliquei-lhes os meus problemas nos pés e a dificuldade para sair dali. Deram-me um lanche (eu praticamente nada comera até aquela hora), um pequeno estojo de costura, no qual havia agulhas e linhas (que seriam muito úteis no meu tratamento), anti-inflamatórios e massagearam-me o ego com elogios pelo esforço.

Incrível. Três delas viviam em Brasília, como eu, e também faziam o Caminho de Santiago, porém de carro. Haviam iniciado o roteiro em Roncesvalles e fizeram, em 3 dias, visitando as melhores cidades, o percurso que eu havia gasto 16.

Deixaram-me perto do Albergue Municipal de Sahagún. Ao agradecer-lhes, emocionado, disse-lhes que Tiago as havia mandado. Eles caíram no choro e, enquanto o carro se afastava, acenando-lhes a mão senti rolarem as minhas primeiras lágrimas em terras espanholas. Mancando, encaminhei-me para o albergue, com o imperdoável erro de não ter solicitado os seus contatos.

Após o banho, tirei as bolhas com a agulha recebida das brasileiras e coloquei o curativo ganhado do ciclista espanhol. Foi mais um erro. Um ferimento daquele porte merecia que eu procurasse o serviço médico local. Mas, com aquela providência, senti-me melhor e busquei um restaurante, onde fiz o meu almoço/jantar.

Sentei-me à mesa de dois peregrinos espanhóis, já conhecidos. Um deles disse-me possuir uma indústria de móveis, na qual também utilizava madeira brasileira, importada através de empresas americanas. Não soube explicar-me a razão de não as comprar diretamente do Brasil. Ou será que a exportação de madeira brasileira é feita somente por multinacionais?

Ao falarmos dos filhos, orgulhoso, o moveleiro contou-me que sua filha, ainda solteira, era uma policial. O amigo dele esclareceu-me, a boca pequena, que na Espanha isso era sinal de status, devido ao grande conceito gozado pela polícia do país. A moça, disse-me, era um bom partido, apesar do perigo de se ser esposado.

Rimos bastante. Eu de uma coisa, eles de outra: entendi que ele insinuara que algum interessado na moça poderia ser intimado a com ela se casar. Só mais tarde soube que, em espanhol, a palavra esposa significa algema. O que, na verdade, não faz muita diferença…

A conversa estava indo bem, até quando um deles perguntou-me se era verdade que alguns membros da polícia brasileira também se envolviam com o tráfico de drogas, conforme havia visto na TV espanhola. Senti que a minha resposta estragou a refeição daqueles homens. Mas quando lhes indaguei sobre os rumores de corrupção na família real espanhola, ficaram em silêncio.

Não tive ânimo para conhecer a cidade, suas igrejas e as famosas ruínas do Monastério Beneditino. Recolhi-me cedo. Enquanto o sono não vinha, lembrei-me que na caminhada daquele dia, pela primeira vez, usara somente um par de meias. Sempre usava dois, conforme a recomendação de todos os manuais: um de tecido mais fino, por baixo, e outro mais grosso, por cima. Mas, em Carrión, o vendedor de meias aconselhou-me não usar outra meia sobre aquela que me vendera, instrução que constava das recomendações do fabricante. Para mim, não funcionou.

Cuidado especial também deve ser despendido na escolha do calçado. Não é fácil encontrar um que seja totalmente apropriado para um esforço longo como o do Caminho de Santiago. O sempre recomendado par de botas tipo “trekking”, que cheguei a comprar, não passou no teste. Nos primeiros treinamentos, feitos no Brasil, as botas provocaram-me dores nos joelhos. Por recomendação médica, adquiri um par de tênis, mais leve e flexível, do tipo “walk”, calçado mais indicado ao tipo de esforço previsto, segundo o ortopedista. Mas, no decorrer da caminhada, descobri que, além de forçar muito o arco dos pés, aquele tipo de tênis não dispunha de isolamento térmico e nem era impermeável.

Fui dormir sem saber se teria condições de suportar o próximo desafio. Mas, às 6 da manhã, iniciei os meus preparativos para partir. Tive de acrescentar à minha rotina matinal a elaboração de um curativo que me permitisse seguir em frente, tarefa quase impossível naquele dia.

Revesti o curativo com bastante gaze. O pé ficou com um volume enorme, justificando os conselhos do Edmar e da Patrícia, meus amigos, veteranos do Caminho, que tanto me orientaram a comprar o calçado com a numeração um pouco superior à que eu usava.

FOTO: Ledigos

FONTE: Ruínas do Monastério Beneditino, em Sahagún

FOTO: Albergue Municipal de Sahagún

FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

 

 

 

 

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