Memórias de um Peregrino – O POVO DO CAMINHO

É muito rico o contato com o povo do Caminho: as senhoras com seus sorrisos de cumplicidade, as crianças e seus olhares sonhadores, os camponeses curiosos… Pessoas simples, tranquilas e amistosas. Muitos parecem procurar nos peregrinos algum mistério, algum segredo. O mistério do próprio Caminho. É comum, nas janelas, nas ruas e nas trilhas, desejarem Buen Camino aos andarilhos. Algumas vezes, nas bifurcações onde a sinalização nem sempre era clara, encontrei crianças indicando o sentido correto aos caminhantes.

Solicitam, eventualmente, que os peregrinos sejam portadores de preces escritas, destinadas a Tiago, segundo me disseram. São também hospitaleiros e, quando necessário, chegam a abrigar os caminhantes. Já próximo a Santiago, Juan, o catalão, e Stefani, a alemã, companheiros do Caminho, foram objeto desse tipo de gentileza: ao pedir informação a um morador de um pueblo sobre a localização do albergue, souberam que o refúgio havia ficado vários quilômetros atrás. Como já era noite e o próximo albergue estava distante, o homem ofereceu-lhes a sua própria casa para o pernoite. No dia seguinte, aceitou a remuneração, ao preço do albergue, fato que não lhe retirou o mérito.

No passado, contam, os moradores locais socorriam os peregrinos feridos ou doentes, a título de promessa ou penitência, tipo de iniciativa hoje dispensada pela excelência do serviço espanhol de saúde.

Ao longo do Caminho, as propriedades rurais são pequenas, geralmente inviabilizando a construção de grande infraestrutura. Excetuam-se as voltadas para a produção de grãos, por sua própria natureza. A maioria sequer tem uma sede ou um curral. Vi poucas fazendas como as concebemos no Brasil. As pessoas vivem nos pueblos e vão de carro, de trator, de moto, de bicicleta ou a pé até as suas glebas, para fazer o trabalho de campo. Os povoados são próximos uns dos outros e as chácaras raramente ficam a distâncias superiores a uns 3 km. Nelas, cultivam grãos (principalmente trigo e milho), uva, hortigranjeiros etc, ou criam bovinos ou ovelhas, dependendo da região.

Praticamente não há empregados rurais. Grande parte do trabalho é feito pelos proprietários. É comum observar-se grupos familiares fazendo colheitas de frutas e hortigranjeiros. Ou, então, em processo de mutirão ou algo similar.

Os porões das casas são, muitas vezes transformados em garagens para os tratores, ou usados como currais, onde tiram o leite das vacas, devolvendo-as posteriormente às suas glebas. Quem por ali passa estranha o mau-cheiro dos porões e os excrementos espalhados pelas ruas, fato muito comum na Galícia.

Os homens apreciam se reunirem nos bares, ao final do dia, para beber o bom vinho espanhol. Ambiente que, às vezes, eu não conseguia tolerar, devido à grande concentração de fumaça. Por causa do frio no inverno, a maior parte dos bares têm pouca ventilação e o uso tabaco era liberado.

Tal como os italianos, os espanhóis falam alto e rápido. E, entre eles, gostam de conversar em seus próprios idiomas ou dialetos, marginalizando os forasteiros, situação que lhes provoca uma silenciosa, porém indisfarçável satisfação. Uma reação natural das minorias, provavelmente incentivada pela opressão franquista, que proibia o ensino das línguas regionais.

Também na Espanha observa-se um fenômeno frequente nos demais países do primeiro mundo: quase a totalidade da população rural é constituída por idosos. A juventude e as pessoas de meia-idade preferem ou precisam viver nas cidades maiores, para estudar e trabalhar. Sem a mecanização agricola intensiva, o trabalho no campo seria inviável.

Devido ao abandono do campo pelos jovens, no mundo moderno a agricultura tende a se voltar para a corporizacão, finalizando o ciclo da agricultura familiar. Em algumas áreas da Europa e da América do Norte, ensaia-se a reocupação do campo por intermédio de condomínios rurais. Muitos deles voltados para a fabricação de produtos mais elaborados e sofisticados, com maior valor agregado. Talvez seja a solução para algumas regiões envolvidas com a produção de vinhos, doces, cafés e queijos finos. Mas esse modelo não se adapta a regiões produtoras de grãos e pecuária de corte, por exemplo. Na Espanha, muitos pueblos têm vocação para o turismo, atividade geradora de muitos empregos, mas isso não resolve o problema da agricultura.

Nas cidades maiores, claro, o estilo de vida é bem diferente. Nelas as pessoas são mais cultas, elegantes e apressadas. Mas não se vê uma movimentação de carros estressante como no Brasil, em povoações de porte equivalente. As cidades espanholas que conheci pareceram-me bem conservadas, humanas e ajustadas ao dia-a-dia das pessoas. A maioria da população tem um bom padrão de vida, sem opulência. À exceção dos ciganos, em nenhum lugar vi miséria, e as construções são de boa qualidade.

FOTO: Os trigais de Castilha

FOTO: Os vinhedos de Rioja

FOTO: Criação de gado na Galícia

FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

 

 

 

 

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