Recordações da Academia Catalana de Letras – A Retirada da Cruz do Anhanguera

A Academia Catalana de Letras relembra que, a retirada da Cruz do Anhanguera de Catalão foi um acontecimento marcante que ficou na memória do município. Os moradores compareceram à estação ferroviária, no dia da transferência da cruz, mas pouco entenderam o que estava acontecendo. Presenciaram lances dramáticos de choro, lamento e raiva, assim como também demonstrações de euforia, satisfação e ardor cívico. Sob um foguetório intenso e ao som da banda de música, a cruz foi acomodada em uma prancha do vagão de carga e o trem partiu rapidamente.

A história começou dois anos antes, lá no mato onde a cruz foi retirada. Estivera fincada no local por quase 200 anos como um sinal misterioso, de procedência ignorada, plantada ao lado de uma antiga passagem que dava no Porto Velho, local de travessia do rio Paranaíba. Bem perto havia uma estradinha de comunicação entre fazendas vizinhas, bastante utilizada, beiradeando o ribeirão do Ouvidor.

Alguns moradores antigos da região contavam que, quando crianças, brincavam perto daquela cruz e ouviam muitos relatos do passado narrados pelos mais velhos. Casos referentes a catequização de índios ou mesmo de expedições garimpeiras pelo sertão. Porém, nada ainda com referência específica ao Anhanguera, na certa por desconhecimento histórico das bandeiras. Desse modo, a enorme e velha cruz era um completo mistério para os poucos moradores rurais que conheciam apenas a sua localização.

Aquelas terras, conhecidas como Fazenda dos Casados, eram parte de uma antiga sesmaria pertencente à família do Cel Mariano da Silva que foi sendo, pouco a pouco, dividida entre filhos e netos.

Em um desses processos de repartição fundiária, no ano de 1914, estiveram ao pé da cruz o juiz de Direito de Catalão e um conhecido agrimensor. O juiz, Luiz Ramos de Oliveira Couto (Luiz do Couto), estava ali como mediador de uma contenda litigiosa entre herdeiros e o agrimensor, Bento Xavier Garcia, como responsável pela medição do terreno. Ambos pessoas cultas e esclarecidas que, intuitivamente, ligaram a cruz à passagem do Anhanguera pelo Porto Velho (Porto do Lalau) distante seis quilômetros do local. Verificando o lenho principal da cruz divisaram o número 172… que seria a prova de sua existência desde 1722 quando aconteceu a expedição do bandeirante.

O agrimensor e o juiz eram maçons ligados à Loja Paz e Amor III inaugurada em Catalão no ano anterior. Sob concordância dos proprietários da terra, resolveram arrancar a cruz e levá-la para a cidade. Mas, tudo foi feito oficialmente no dia 10 de novembro de 1914, conforme ata registrada nos livros da maçonaria. No momento da retirada da cruz, estiveram presentes vários convidados. Entre eles estavam o Major Luiz Sampaio (arbitrador), o Major Miguel José da Costa (promotor público), o Cel Bento Xavier Garcia (agrimensor) e Luiz Rodrigues do Couto (juiz). A cruz foi colocada em um carro de boi e levada para as dependências da maçonaria na cidade.

Cinco dias depois, nas comemorações da Proclamação da República, a cruz foi apresentada aos moradores de Catalão. Momento muito solene quando discursaram, com incontido arroubo cívico, Mendes de Almeida, Gastão de Deus e Luiz do Couto, todos relembrando as passadas do Anhanguera pelos sertões de Goiás.

A população ficou bastante comovida com o lenho sagrado e os próprios envolvidos foram se afeiçoando àquela velha cruz.

No entanto, dois meses depois, o juiz Luiz do Couto solicitou à loja maçonica, por ofício, que a cruz fosse entregue ao fórum para ser removida para a capital de Goiás.

Foi um choque inesperado. Rapidamente, dois dias depois, em 17 de janeiro de 1915, o Venerável da Loja, Bento Xavier Garcia, informou que a entidade resolvera adiar qualquer decisão com respeito à entrega da cruz. Um sinal claro de dissidência interna dentro da maçonaria com relação à questão.

Através dos documentos pode-se perceber que não era unânime, entre os maçons, a decisão de entrega da cruz ao juiz. Tudo ficou então adiado, mesmo porque uma onda de protestos contra a transferência da relíquia havia sido desencadeada pelo eminente advogado Randolfo Campos, também maçon pertencente à Loja Paz e Amor III.

O tempo foi passando, mas o juiz continuou inabalável em sua pretensão. Luiz do Couto, nascido na Cidade de Goiás, via na transferência da cruz uma forma de notabilizar-se e enriquecer mais ainda o patrimônio cultural da velha capital. Partiu, então, para uma luta de bastidores convencendo políticos e autoridades religiosas vilaboenses a ingressar naquela disputa.

Não deu outra. Quase um ano e meio depois, o governo estadual baixou um decreto, em 23 de junho de 1916, ordenando a remoção da cruz para a capital arcando, inclusive, com as despesas decorrentes do transporte.
Não havia mais como apelar diante da força do decreto lei estadual. O incansável Randolfo Campos percebeu que somente a população poderia impedir a transferência. Por isso, passou a insuflar os moradores contra a decisão, visitando casa por casa na cidade de Catalão. O vilaboense Luiz do Couto, por sua vez, usou de seus poderes judiciários influenciando professores, estudantes, autoridades e funcionários públicos municipais a fazer, no ato da transferência, uma festiva e solene despedida. Estava convencido de que a cruz seria um presente inestimável que Catalão iria oferecer ao patrimônio e à memória do estado. A cidade seria eternamente lembrada por isso.

Na aguda percepção do juiz, o decreto lei deveria ser cumprido com a máxima urgência. Ainda iriam construir um monumento adequado para receber a cruz na Cidade de Goiás (que ficou pronto somente dois anos depois). Mas, a pressa era de retirá-la de Catalão, antes que o clamor popular o impedisse. Mesmo porque, dentro da própria maçonaria havia um sentimento de que a cruz pertencia historicamente ao município de Catalão é que o juiz, apesar de maçon, poderia estar cometendo uma arbitrariedade, utilizando-se de um cargo influente para benefício de sua terra natal.

O dia da transferência foi rapidamente marcado, servidores e estudantes convocados, banda de música a postos e a cruz carregada em procissão festiva para a estação ferroviária.

Registrou a escritora Maria das Dores Campos que, “no dia em que a cruz foi levada à estação ferroviária, carregada por rapazes e moças de nossa sociedade, ao som da banda de música e foguetes, Randolfo Campos, no momento em que a cruz era colocada na prancha, fez violento discurso em frente à multidão que inconsciente cooperava para com a atitude do Dr. Juiz de Direito, nos roubando aquele marco histórico”.

Apesar de toda a resistência, a cruz foi colocada no vagão cargueiro e seguiu rumo a Ipameri, ponto final da estrada de ferro naquela época. Lá foi entregue ao juiz municipal Rodolfo Luz Vieira.

Não havia mais pressa. O mais difícil tinha sido retirá-la de Catalão. Tanto que a cruz permaneceu em Ipameri por um ano e dois meses, Quando então seguiu, em carro de boi, para a Cidade de Goiás.

O meio de transporte não poderia ser mais adequado. O gemido do carro de boi certamente representava o sentimento que ficou no coração do povo e da maçonaria de Catalão.

O monumento, com a cruz que Catalão tanto queria, foi inaugurado às margens do rio Vermelho em 17 de setembro de 1918. Sessenta léguas distante do município onde um dia fora plantada.

FOTO: Randolfo Campos que lutou contra a transferência da Cruz do Anhanguera de Catalão.

FOTO: Luiz do Couto que notabilizou-se pelo achado da Cruz do Anhanguera.

FOTO: Antiga sede da Fazenda dos Casados onde a Cruz do Anhanguera foi encontrada.

FOTO: A Cruz do Anhanguera em monumento na Cidade de Goiás.

Luís Estevam

 

 

 

 

 

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