À espera dos shows: músicos falam sobre o fazer artístico em tempos de pandemia

por Isabella Candido da Silva

Com o isolamento social e todo o impacto psicológico gerado pela pandemia de covid-19, assistimos ao aumento da discussão sobre o quanto as manifestações artísticas podem ser um escape num momento como este. Vimos através dos meios digitais o aumento do consumo de arte, que se tornou uma forma não só de fugir do caos, mas também de se comunicar e trocar informações.

Numa realidade na qual não existem toque, presença ou troca, as pessoas interagem e buscam entretenimento na internet e, assim, lives, conteúdos por streaming, YouTube e demais redes sociais se tornaram a forma de artistas interagirem e levarem suas produções ao público.

Ao mesmo tempo que esses artistas buscam formas de manter a produção e o contato com seus espectadores, como o restante da população, eles também tiveram sua vida pessoal e profissional totalmente transformada pela pandemia. Diante de todo o impacto, depararam-se com a necessidade de aprender a se reinventar, buscar alternativas para manter o sustento e lidar com o abalo psicológico e suas consequências no fazer artístico.

Selecionada pelo edital de emergência Arte como Respiro | Música – que em maio de 2020 selecionou 200 artistas musicais do Brasil todo –, a cantora e compositora Ceumar precisou mudar a rota e se readaptar. Em 2020, ela faria parte do segundo ano do projeto Sonora Brasil. Em 2019, foram, ao todo, 42 apresentações pelo Brasil através do Sesc Nacional; portanto, a expectativa para o ano passado não era menor. “Seria o segundo ano desse projeto chamado Licas Femininas. Somos três cantoras no palco: Déa Trancoso, Cátia de França e eu. E nós então faríamos mais de 40 apresentações em 2020. Acho que essa foi a grande perda do ano passado em termos de trabalho e expansão. Em outubro de 2019, eu tinha lançado também meu oitavo álbum, Espiral, e estava muito confiante de que poderíamos fazer vários shows, o que não aconteceu”, conta Ceumar.

Embora tenha tido seus planos interrompidos, a cantora acredita na espontaneidade das coisas e, desde o início do isolamento, decidiu enfrentar o que viesse com naturalidade, tirando um tempo para observação e para sentir esse novo momento que ainda estava se desenvolvendo. “Como artista independente que sou, e como eu já vinha desenvolvendo minha carreira nesses mais de 20 anos, sou bastante econômica, acredito muito na espontaneidade da criação e da resposta, então não me vi em uma situação de desespero e de necessidade de fazer mil coisas”, diz. “Acredito que, do meu jeito, continuei e continuo fazendo as coisas no meu tempo, não tenho grandes expectativas nesse momento nem com o momento que já conheço da minha carreira e das coisas que produzo.”

Ceumar (imagem: Julia Rodrigues)

A artista enfrenta agora um momento único, buscando nuances e se dedicando a outras atividades, mas vê o tempo como um estudo precioso de uma nova linguagem. “Eu, por exemplo, estou gostando de aprender e observar outros artistas, como cada um está se movimentando, buscando. A gente aprende bastante”, afirma.

Ceumar tem participado de algumas reuniões que discutem formas de se manter trabalhando virtualmente, garantindo os direitos e as remunerações, para que os artistas consigam sobreviver minimamente através das mídias e redes sociais. Afinal, os benefícios desse aumento do consumo de arte precisam chegar aos profissionais que a fazem. “Eu acho que a música, as artes em geral, têm muito a ganhar com esse momento e esse novo jeito de utilizar as mídias sociais. Creio que ainda estão surgindo possibilidades para que a gente saiba e possa usá-las. Vejo muito positivamente, mas ainda estamos caminhando para descobrir possibilidades de ter remuneração por todo o material que oferecemos”, finaliza.

Criação coletiva

Quando se trata de uma banda, a renda que vem dos shows não sustenta apenas um, mas todos os integrantes que trabalham juntos para produzir e levar sua arte ao público. Para A Timeline, manter a remuneração por seus trabalhos representa um dos maiores desafios desde o início da pandemia. “Acreditamos que os desafios atravessam diversas esferas. No campo concreto, temos a necessidade de conseguir continuar a fazer com que a música seja provedora de nosso sustento, mas sabemos que perdemos algo fundamental, que está na ponta do que fazemos, que é a troca com o público. Shows eram até então a forma que conhecíamos e praticávamos para tirar nosso sustento, além de gravações e aulas”, diz Lucas Cirillo, gaitista da banda.

No final de 2019, o grupo apresentou o álbum Oroboro, seguido de um grande show de lançamento pelo Itaú Cultural, em fevereiro de 2020, algumas semanas antes do início da quarentena. Segundo a banda, o evento foi essencial para mostrar ao público o fruto de tanto afinco e dedicação com o álbum e seus desdobramentos. Para 2020, o trio tinha grandes planos de circular com o trabalho, mas todos foram frustrados devido ao cancelamento dos shows presenciais.

“Não conseguimos adaptar a agenda que era física para o digital, mas pudemos pensar e trabalhar um material visual a partir de escolhas estéticas em que acreditamos e assim seguiremos. Então, a forma como estamos nos adaptando a essa realidade é irmos pautando audiovisualmente uma linguagem e estética que acreditamos se comunicar com todo o conceito de Oroboro”, diz Cirillo.

A banda também foi uma das participantes do Festival Arte como Respiro, que exibiu apresentações de artistas de diferentes linguagens ao longo de 2020 e começo de 2021. A Timeline produziu um vídeo com três composições de Oroboro: “Mojuba”, “Timeline” e “Sete flechas”. O material foi gravado todo a distância e depois os integrantes foram juntando suas produções individuais.

Timeline Trio é formado por Lucas Cirillo (gaita), Kau (bateria e programações eletrônicas) e Vitor Arantes (teclados e piano) (imagem: divulgação)

A Timeline nasceu do exercício da criação coletiva através de uma prática espontânea e livre, o que faz com que todo o seu fazer artístico seja coletivo e compartilhado. Com o isolamento, essa troca feita entre os integrantes presencialmente precisou se readaptar ao remoto. “Existe um momento muito particular quando a gente está criando, no qual sentimos que a conexão foi estabelecida, e nessa hora a gente se emociona, arrepia, toca com a alma. Essa preciosidade, além de tudo, nos traz uma paz de espírito e segurança sobre ser aquilo mesmo que deveríamos estar fazendo naquele momento. Completude que fala, né?”, conta Cirillo. “Com a pandemia tivemos que ligar nossos bluetooths internos e nos conectar com a criatividade mais intelectual, uma vez que não tem como a gente tocar a distância com a simultaneidade do ao vivo.”

Assim como Ceumar, a banda decidiu respeitar seu tempo e toda a espontaneidade da arte. Para eles, o isolamento social foi também aplicado à virtualidade das relações. Pensando na saúde mental de seus integrantes e na valorização e retorno de suas produções, escolheram se resguardar e se fortalecer internamente para o novo ano e tempos melhores.

“Se antes a música já estava sendo desvalorizada social e institucionalmente, agora nos era nítido que, além de oferecermos nossa arte, nossa cura, nossa expressão de alma, além de não termos a troca energética com o público, não teríamos a valorização material também. Pareceu-nos que não haveria o equilíbrio das trocas nesse caso”, explica Cirillo. “Então, decidimos de início que não faríamos lives se não houvesse as devidas condições de expressar a complexidade do nosso trabalho. Além da verba, nossa condição emocional, espiritual e mental deveria estar fortalecida para podermos performar nesse palco virtual.”

Todos esperam ansiosamente a volta do contato direto com o público. Nada supera os shows e toda a troca que proporciona a nutrição energética necessária para a produção de seus trabalhos. Para ambos, esse é o grande barato.

 

FONTE: Itaú Cultural