A QUEDA DA TORRE: O desmoronamento de uma imposição por Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

Numa manhã de 1980, a Irmandade presenciou o desmoronar de parte do seu símbolo de devoção mais significativo: a torre da sua atual igreja. A queda da torre abalou mais que a devoção dos congadeiros; atingiu a relação entre a Irmandade local e Igreja Católica. A atual igreja do Rosário teve sua edificação iniciada em 1936 e sua finalização em 1941, o que só foi possível devido a ação coletiva dos congadeiros e devotos que doaram materiais de construção e mão-de-obra para que a mesma pudesse ser concluída.

Várias vezes, a prática adotada para alavancar a construção, quando se tinha material, foi o mutirão, pois os congadeiros se reuniam nos finais de semana para adiantar a obra. Percebi que ter uma igreja é orgulho para a Irmandade, pois a mesma foi construída as duras penas, num momento em que se tentava reavivar a Festa em Catalão. Desse modo, a doação do terreno em 1936 serviu de impulso para a recriação dos festejos devocionais na cidade.

Após pouco mais de quatro décadas de sua edificação, a igreja do Rosário desmoronou. Esse acontecimento simboliza a falta de apoio à construção por parte do poder público local, da Igreja Católica, dentre outros, o que levou os congadeiros a erguerem o templo sem planejamento técnico. Segundo relatou o senhor Edson Arruda, os motivos da queda de parte da igreja foi fruto do processo de construção aplicado na obra utilizando restos de materiais doados pela população e sem nenhuma consulta técnica que referendasse ou desse credibilidade e segurança à edificação.

É perceptível na fala do narrador os motivos do desmoronamento, da mesma forma que ficou evidente o quanto foi difícil viver aquele momento e, muito mais, revivê-lo. Contudo, o senhor Edson Arruda disse que a queda da torre da igreja trouxe mudanças em relação à importância do Congado para a cidade e o uso da Festa pela Igreja católica local. Segundo ele, os reflexos desse fato foram cruciais para a mudança de atitude da Irmandade em relação à convivência com os padres católicos locais, pois, diante da situação enfrentada, a Irmandade ao pedir auxílio à Igreja viu-se numa situação embaraçosa, quando os padres negaram ajuda para a reconstrução da torre danificada.

A história, como bem frisa o senhor Edson Arruda, parecia ter voltado aos tempos do início dos festejos na cidade, quando os padres tentaram acabar com a Festa tomando a igreja da Irmandade e proibindo seus integrantes de cultuar, naquele espaço, a sua devoção e externar sua cultura. Desse modo, para o nosso narrador a falta de apoio dos padres foi visto como um ato proposital, e muitos congadeiros foram unânimes em afirmar que a pretensão da Igreja era utilizar a mesma estratégia aplicada no final dos anos de 1800, quando da proibição da Festa nos limites do templo já permutado, e que agora se repetia, pois se a torre não fosse restituída a comemoração se enfraqueceria.

Na percepção do senhor Edson Arruda: “Não foi fácil para nós dançadores ver nossa igreja no chão. Mas, mais difícil que isso foi receber um não da própria Igreja e dos políticos da cidade”. (Entrevista, 2001).

Na visão do general do Congado, já falecido, senhor Gabriel Gustavo da Silva: “Quando a gente foi comunicado da possibilidade da igreja cair, porque a torre apresentava muitas rachaduras, a gente foi buscar ajuda, mas todo mundo pedia um tempo pra nos ajudar. Nós avisávamos que o caso era sério e ninguém nos ouvia. […] Não foi fácil quando a gente foi chamado no largo (Praça do Rosário), quando cheguei lá e vi o que tinha acontecido fiquei muito triste. Vi o nosso sonho desmoronar todo, sabe?! Mas, o pior foi que a gente avisou, pediu ajuda e nada. Até a Igreja Católica negou ajuda”. (Entrevista, 2001).

FOTO: Gabriel Gustavo da Silva e sua filha Glenia Márcia

As narrativas dos entrevistados se entrelaçam, reforçando a falta de empenho das autoridades eclesiásticas e municipais em ajudar a solucionar o problema. A busca de apoio constante se devia ao fato de que a Irmandade não possuía dinheiro em caixa para reerguer o templo, uma vez que a diretoria havia repassado anteriormente todo o montante arrecadado com as festas anteriores e doações recebidas à paróquia local para que fosse edificada na cidade uma nova igreja que sediaria mais uma paróquia católica em Catalão.

Como disseram os entrevistados, a Irmandade solicitou também a ajuda junto a prefeitura local para reerguer a torre, mas o prefeito da época alegou falta de condições financeiras para arcar com todas as despesas. Diante da situação de desconforto, como bem destacou os senhores Edson Arruda e Gabriel Gustavo, os dançadores mais uma vez se uniram e, em regime de mutirão, e com os materiais doados pela comunidade, reconstruíram a torre e deram prosseguimento à devoção. Para muitos congadeiros esse fato serviu como alerta para se rever a relação da Irmandade com a Igreja e o sentido que a cidade dá aos festejos, pois segundo o senhor Edson Arruda: “É, se o povo da cidade soubesse o quanto a gente já sofreu pra ver essa Festa em pé eles davam mais valor nisso tudo! Mesmo nós não sendo tão unidos como deveria a gente quando no sufoco, se reúne e luta […] é claro que são sempre os mesmos, mas a gente luta! Lutamos pra levantar nossa igreja; pra dizer não pros padres que queriam só o nosso dinheiro […] (Entrevista,2001).

FOTO: Edson Arruda

Como bem destacou o entrevistado esses desencontros provocaram um descontentamento no interior da Irmandade e para muitos dançadores que viveram o momento ele simbolizou a retomada da consciência em relação ao uso dos recursos financeiros da Irmandade. Nas palavras do senhor Edson Arruda, foi com muita luta e questionamento que pressionaram a diretoria da Irmandade e a igreja a mudar a decisão instituída sobre a divisão dos lucros obtidos anteriormente quando a igreja ficava com noventa por cento do montante e a Irmandade apenas com dez por cento. Diante do ocorrido, a diretoria teve, sob pressão de muitos congadeiros, que reverter o quadro ficando com 90% da renda e destinando 10% à igreja.

Segundo nosso narrador: “Nós tivemos que trabalhar muito pra podermos levantar nossa igreja. Todo o serviço foi feito em mutirão. Cada um ajudava dando sua demão como podia; uns trabalhava de pedreiro, outros de servente, carpinteiro, carregando tijolo, saímos pedindo material ou buscando o que nós conseguíamos. Outros iam até a linha do trem, que passava por reforma, para recolher cascalho e brita doados pela empresa […]. Muito do material que está ali na igreja, principalmente na torre foi de doação dos próprios dançadores. A igreja não colaborou com nada. Foi daí que nós passamos a lutar para que o Estatuto da Irmandade fosse mudado. Nós conseguimos então reverter a distribuição da renda da festa que passou a ser de 90% para
Irmandade e não mais de 10%. Agora nós não temos dinheiro em caixa, mas é porque nós investimos em benfeitorias para a Irmandade. (Entrevista, 2001).

Essa reviravolta inesperada fez com que a igreja resolvesse impor algumas regras à Irmandade para que a Festa continuasse sendo realizada sob a batuta da igreja católica e referendada como a comemoração festivo-devocional da cidade. A Igreja exigiu, a partir dos anos de 1980, que todas as despesas com a igreja do Rosário como ornamentação, limpeza, contas adquiridas deveriam ser de responsabilidade da Irmandade que deveria arcar, também, com outras despesas básicas como a compra de velas, vinhos e hóstia que fossem utilizados nas celebrações eucarísticas naquele recinto. Foi acordado que todos os lucros obtidos com batizados, casamentos, dentre outros deveriam ser destinados aos cofres da Paróquia.

Esse posicionamento gerou certo desconforto na Irmandade local, mas foi aceito na tentativa de amenizar os conflitos e consolidar os festejos em Catalão, como bem destaca o senhor Edson Arruda: “[…] Nós estávamos numa situação complicada, entende? Nós havíamos deixado a Igreja numa saia justa muito grande. No fundo a gente sabia dos riscos que nós corríamos de até ter a festa proibida, mas a gente arriscou e deu certo. […] É por isso que nós aceitamos a condição da Igreja. […] Para nós mais importante que dinheiro é nossa fé e poder manifestá-la.  (Entrevista, 2001).

A história da Festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário de Catalão-GO tomou caminhos diferentes e na medida em que foi sendo vivida, outros acontecimentos se materializaram como parte da trajetória da comemoração, dentre eles o episódio de destruição da imagem de Nossa Senhora do Rosário.

FOTO: Jornal Primeira Mão – Julho de 2004

FOTO: 2005

 

FOTO: Setembro de 2011

FOTO: Torre da Igreja em 2017

FOTOS: Fevereiro de 2019