De vez em quando a onça come um Por Paulo Hummel Jr

A região de Diamantino, em Mato Grosso, iniciava a sua expansão agrícola, com a predominância de lavouras de arroz de sequeiro, utilizado na abertura de áreas para a futura formação de pastagens de braquiária. Colonos de várias regiões se instalavam no município, principalmente gaúchos, onde acabaram fundando várias cidades, como Nova Mutum, que naquela época tinha um armazém e algumas poucas casas. A soja ainda era apenas um ensaio.
As BRs 163 e 364, as principais vias da região, mais pareciam estradas vicinais, cheias de atoleiros. Os aeroportos eram incipientes pistas de cascalho, a comunicação era difícil, os armazéns eram escassos e havia a presença de posseiros e muitos aventureiros.
Estávamos em mais uma viagem dentro do programa de garantia de preços mínimos aos produtores rurais, do governo federal, no início da década de 80 (“Plante que o João Garante”). Era início de abril e nossa meta era divulgar as condições de compra de estoques pelo governo, de forma a evitar a queda dos preços aos agricultores. E, também, organizar a armazenagem e o escoamento da produção eventualmente adquirida.
Chovia demais, agravando as péssimas condições das barrentas estradas da região. Os deslocamentos até as comunidades, para a divulgação do nosso trabalho, eram verdadeiras aventuras. Somente transitavam por lá, na época das águas, Jeeps 4×4, que nem sempre alcançavam seu destino. Ficar retido em um atoleiro, sem água e comida, era corriqueiro. Chegamos a ser presos por um grupo de posseiros, mas isso é outra história, que depois relatarei.
Eu fazia parte de uma equipe espalhada por todo o Mato Grosso, Goiás e Rondônia e comigo estavam em Diamantino o Petrônio de Aquino Sobrinho e o André Luiz, técnicos da Comissão de Financiamento da Produção (CFP). Apesar das dificuldades, tentávamos desenvolver da melhor forma esse trabalho pioneiro na região, operação que valorizou a atuação do governo e minimizou os problemas dos corajosos desbravadores que insistiam em expandir a fronteira agrícola.
A rotina diária não era fácil e, às vezes, perigosa. Haviam pouquíssimas opções à noite, para se alimentar ou tomar uma cerveja. Chegamos a encontrar, na vida noturna da cidadezinha, homens com revólver no coldre, como no velho-oeste, o que nos incentivava a permanecer no Kayabi Hotel à noite, que dispunha de uma boa pizzaria.
E lá nesse restaurante sempre encontrávamos um senhor, com mais de 50 anos, muito gentil, também hospedado no hotel, com quem às vezes dividíamos a mesa. Ele sempre enaltecia o nosso trabalho e se mostrava curioso sobre as nossas atividades. Tomei, então, a liberdade de perguntar-lhe sobre quais atividades ele desenvolvia ali. Afinal, Diamantino ficava na rota que vinha da Bolívia…
Foi quando ele nos revelou que “tomava conta” de uma grande fazenda na região, com mais de 30 mil hectares, pertencente a um importante grupo financeiro. Indaguei-lhe, então, se nessa fazenda desenvolviam agricultura ou pecuária, no que ele respondeu-me que não plantavam e nem criavam gado. Só tomavam conta da área.
Percebendo sua reserva, insisti: – Vocês fazem a proteção da propriedade, contra posseiros, coisas assim?
– Exatamente, tomamos conta da área – disse-me ele.
– E já foram obrigados a usar a força contra os posseiros? Perguntei.
Ele respondeu: – de forma alguma! Mas vc sabe que aqui tem muita onça, não é? De vez em quando a onça come um!
Um trabalho duro e perigoso, mas que fazíamos com muito gosto. E é gratificante perceber que nosso esforço não foi em vão. O estado de Mato Grosso hoje é o maior produtor agrícola do Brasil e demos nossa pequena contribuição para isso.
A principal rua de Diamantino, na década de 80
Paulo Hummel Jr