GLICÉRIO COELHO – UM PEÃO DE BOIADEIRO Por Paulo Hummel Jr

O longo período do tropeirismo, iniciado ainda na época de colônia, é caracterizado pela movimentação de gado e mercadorias por meio de tropas (burros, mulas e cavalos), basicamente para atender a mineração e a expansão da pecuária. Deixou profundas marcas no povo brasileiro e foi nesse cenário que se desenvolveu a figura do peão de boiadeiro, profissional encarregado da condução das boiadas, personagem recorrente em nossa cultura.
Em nossa região, em Catalão, a partir de 1918, a ferrovia facilitou um pouco o transporte do gado, mas os ramais ferroviários eram escassos e a maior parte da movimentação dos rebanhos continuou a ser feita pelos peões de boiadeiros. Somente a partir das décadas de 60 a 70 do século passado o transporte rodoviário de gado restringiu bastante essa atividade, hoje circunscrita a situações específicas.
O livro Memórias de um Peão de Boiadeiro, de autoria de Glicério Coelho, com a 1a edição publicada em 1994, traz-nos o relato da vida de um desses profissionais, que por cerca de 45 anos atuou nesse ramo. Glicério veio para Catalão em 1920, com 23 anos de idade, a convite de um seu conterrâneo, Braz Valentim Dias, que era Gerente do Escritório da Charqueada Santa Maria, então de propriedade do Cel. João Vaz, de Jerônimo Vaz (Nonhô) e de Fernando Brun, indústria que posteriormente também passaria pelas mãos de João Margon, Nilo Margon Vaz e outros.
Glicério nasceu em 25/09/1897, no arraial de Espírito Santo da Forquilha, hoje Delfinópolis, no sudoeste do Estado de Minas Gerais, no vale do Rio Grande, entre esse rio e as serras da Gurita, Babilônia e Sete Voltas. Era filho de Antônio Secundino de Castro e de Maria Ubaldina de Paula. Aos 4 anos ficou órfão do pai, assassinado. Coelho foi um apelido que trouxe da infância e por ele se tornou conhecido por todos, alcunha que incluiu no próprio nome.
Sua região de origem faz divisa com o Estado de São Paulo, sob a influência de Franca, e era voltada para a pecuária, onde Coelho adquiriu a prática da profissão, trabalhando como peão de boiadeiro, a exemplo de vários parentes e amigos.
Era a sua atividade preferida, na qual se iniciou aos 14 anos, tornando-se um “prático contador de bois, aprendendo a conduzir boiada e a lidar com a peonada”. Viajou muito por sua região, por São Paulo e pelo Triângulo Mineiro levando ou buscando gado. Mas seu sonho era se aventurar, conhecer outros rincões, ir para o sertão, Mato Grosso ou Goiás.
Segundo o livro, a cidade de Catalão que ele encontrou era a sala de visitas de Goiás: tinha duas charqueadas, dois bons curtumes e uma indústria de subprodutos do couro (calçados, arreios, e artigos para montaria), “bem trabalhados”. Já contava com a ferrovia, tinha produção agrícola razoável e vários engenhos que fabricavam açúcar, rapadura e aguardente, “das melhores”. A pecuária tinha escala e exportava para Minas Gerais e São Paulo, Estados que aqui também compravam suínos. E logo se instalaram as fábricas de manteiga.
O comércio naquela época era dominado pelos comerciantes sírios, e Coelho cita o João Miguel e filhos, o Antônio Sebba, o José Moisés, os Abrão, os Fayad, os Cosac, os Democh, colônia que muito contribuiu para para o progresso de Catalão, registra o autor.
Na Fazenda Degredo, onde se concentrava a movimentação bovina da Charqueada, Glicério conheceu Maria Vaz Coelho, a Mariquinha, filha de José Albino Vaz, capataz da propriedade e irmão de João e Jerônimo Vaz, patrões na Charqueada. Casaram-se em 1926 (“tivemos uma vida feliz”) e foram pais de 10 filhos, por ordem decrescente: 1. Antônio Coelho Vaz, nascido em Ipameri; 2. Sebastião Coelho Vaz, nascido em Orizona; 3. Hornézia Coelho Vaz (Nezinha), nascida em Orizona; 4. Maria Aparecida Coelho Vaz (Cidoca), nascida em Orizona; 5. Francisca Coelho Vaz (Chiquita), nascida em Silvania; 6. Braz José Coelho, nascido em Silvânia; 7. Geraldo Coelho Vaz, nascido em Goiânia; 8. Terezinha de Jesus Coelho Vaz, nascida em Ipameri; 9. José Coelho Vaz, nascido em Ipameri; e 10. Jamil Carlos Coelho Vaz, nascido em Catalão. Um grande orgulho do Glicério foi ter conseguido dar estudos a seus filhos e todos eles têm curso superior.
Como se vê, por circunstâncias do seu trabalho, Coelho morou em todas essas cidades, afora uma breve estada em Cristalina.
Na política catalana, ele relata, todos os partidos eram governistas, acompanhando os Caiados. Mas o perigo estava na política local. Havia dois partidos não-oficiais: o Papo Roxo (com origem nos Republicanos) e o Papo Amarelo (também chamado Democrata).
Quando chegou, o intendente era Manoel Gomes de Paiva (Neguinho), pai de Salomão de Paiva, do Papo Amarelo, ligado aos Aires e alguns coronéis. O Papo Roxo era ligado aos Nettos e aos Sampaios. Era liderado pelo Cel Luis Sampaio e seus filhos Diógenes e Dolival: Diógenes era genro de José Netto Carneiro e o Dolival era genro do Cel Salviano Antônio da Costa, “político forte e valente, ligado aos Paranhos”.
Os nomes dos partidos faziam referência à cor das chapas de latão das carabinas dos jagunços e capatazes dos líderes partidários…
Começou o trabalho na Charqueada como capataz, responsável pela movimentação dos animais da indústria, atividade que exerceu por muito tempo, ora como empregado, ora como comissário. Mas atuou, também, diretamente no comércio de gado, comprando e vendendo boi gordo, vacas, tourinhos, novilhas… muitas vezes recebendo, em permutas, gado, porco e grãos, fazendo gambiras, como ele gostava de dizer. Até carro-de-boi chegou a receber nesses negócios.
Apesar do sentimento de liberdade proporcionado pela atividade, o peão de boiadeiro tem um trabalho duro, enfrentando o sol, o frio e a chuva, muitas vezes dormindo ao relento e enfrentando perigosas travessias de rios. Serviço também arriscado, pois o capataz é responsável pela integridade do rebanho, mercadoria cobiçada, de alto valor, exigindo treino e coragem.
Habituado a um serviço mais regular em sua região, estranhou as condições bem mais difíceis aqui em Goiás. Um verdadeiro sertão: gado mais bravio, criado na larga, poucos pastos cercados para o pouso dos animais, exigindo ronda noturna, sem abrigo. Campos abertos, sem cercas, dificultando encontrar as arribadas (reses extraviadas). Poucas pontes existiam, exigindo travessias dos rios a nado. Situação que dificultava o estabelecimento de marchas diárias com as distâncias ideais.
Registra no livro, ainda, a técnica e a hierarquia de uma comitiva na condução de uma boiada. Comandada pelo capataz, com o apoio de ponteiros, arribadores, culateiros e outros, com o número de peões dependendo da quantidade de reses.
A boiada deve ser conduzida com cuidado, com paradas para pastagem e para beber água à vontade, o que pode exigir até duas horas. Nos lugares de atoleiro ou com pedregulhos, há necessidade de um peão ficar rebatendo os animais, para passarem mais devagar e evitar problemas. Nas porteiras, na hora de contar o gado, também um peão deve ficar escoando, para a boiada passar devagar, não acumular, para não tocar o quadril em seus moirões.
O transporte de animais gordos merece cuidado e paciência, exigindo mais tempo, para o rebanho não perder peso, com marchas menores, de três léguas (cerca de 18 km), no máximo. Com o gado mais novo e esperto, a marcha pode chegar a 4 léguas (aproximadamente 24 km).
A comitiva conta também com cargueiro(s) para conduzir os mantimentos (cereais, feijão, arroz, farinha, toucinho, carne etc) e a tralha da cozinha, bem como os sacos de roupas de vestir e de cama dos peões. Todos esses objetos são colocados em bruacas, que são malas feitas de couro de gado, formadas de caixotes ou grades de madeira cobertas com couro, com capricho a gosto do dono.
O cargueiro é composto de cangalha, com dois alções tipo forquilha, colocada no lombo do animal. Nela são instaladas as bruacas; por cima, vão os sacos de roupa, a trempe que serve de fogão e as ferramentas de ferrar animais, com algumas ferraduras sobressalentes.
Essa carga colocada sobre as bruacas é chamada de “dobros”. Feito o carregamento, cobre-se tudo com um couro, para agasalho e proteção da chuva, sol e poeira, chamado ligário, o qual é apertado com um cinto largo, também de couro, com um gancho de ferro em uma das extremidades; na outra, uma correia forte, torcida, presa a um pedaço de madeira roliço, com cerca de 50 cm de comprimento, chamado cambito, para prender a carga. A cinta de couro chama-se sobrecarga. Na frente da cangalha vai o peitoril, colocado na parte dianteira do animal, enquanto na parte de trás vai a retranca, que é feita de sola macia e colocada na traseira do animal, abaixo da cauda. O ligário, por ser de um couro de rês nova, macio e sem rugas, serve também como cama para os peões que não usam rede.
A arrumação do cargueiro fica por conta do cozinheiro e seu ajudante. O número de cargueiros depende do tamanho da comitiva e o animal apropriado para a carga é o burro, por ser mais forte e resistente do que o cavalo, e de ter o lombo mais firme.
Fala também sobre as características do bom peão, que deve ter gosto por sua montaria e possuir uma boa sela (ele sempre preferiu os arreios de duas cabeças), ter um bom pelego, uma boa rede, um bom laço, um bom rabo de tatu (chicote) ou uma pinhola grande e boas esporas (às vezes, de metal).
Coelho relata, em seu livro, entre outras, uma longa viagem, realizada em 1955, com 5 meses de duração, que ele denominou de Viagem ao Vão dos Angicos (região que fica ao norte do hoje Distrito Federal). Partiu de Catalão com uma partida de tourinhos e alguma tropa (cavalos e mulas). O objetivo era a venda dos animais, mascateando com os fazendeiros da região.
Nessa viagem levou seu filho Braz, à época adolescente, que seguiu com a comitiva até a Fazenda Marinheiros, no município de Orizona. As aulas escolares exigiam seu retorno a Catalão.
Com dezenas de pontos de pernoites, nessa viagem ele percorreu fazendas e povoados nas cidades ou povoados de Catalão, Ipameri, Campo Alegre de Goiás, Cavalheiro, Orizona, Maniratuba, Buritizinho, Luziânia, Braslândia e Padre Bernardo, só na ida, retornando via Anápolis, Vianópolis e Orizona. Vendeu todos os animais levados e os adquiridos nas barganhas realizadas, retornando pra casa pela ferrovia.
Ficou nessa profissão até julho de 1956, quando, por insistência dos filhos e amigos, com o aval da esposa, deixou a atividade e ingressou no fisco estadual, em Catalão. Em 1968 mudou-se para Goiânia, onde, em 1979, sofreu o “grande golpe com o falecimento de minha querida companheira”. Viveram 53 anos juntos, “na maior harmonia”. Glicério nos deixou em 09/03/1997, 6 meses antes de completar um século de vida.
O livro deixado por Glicério é um dos raros a retratar o trabalho do peão de boiadeiro, uma atividade quase extinta e desconhecida pela maioria dos jovens. Entretanto, basta uma breve análise das nossas manifestações culturais para se perceber a presença do tropeirismo no imaginário do povo goiano. O berrante, a catira, a música sertaneja, os rodeios, a culinária do campo e outras tradições goianas estão no dia-a-dia da nossa população e merecem ser preservadas. A cultura do peão de boiadeiro faz parte da nossa identidade, merecendo ser considerada como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de Goiás.
FOTO: Glicério Coelho
FOTO: Peão tocando o Berrante
FOTO: Ponteiro guiando o rebanho, com o berrante em punho
FOTO: Bota de boiadeiro
FOTO: Esporas
FOTO: Laço de boiadeiro
FOTO: Pinhola

FOTO: Chicote rabo de tatu

FOTO: Bruaca
FOTO: Burro com a bruaca
FOTO: Sela de duas cabeças
FOTO: Capa do livro Memórias de um Peão de Boiadeiro, de Glicério Coelho

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