Memórias de um Peregrino – OS CATALÃES

Fizemos uma merenda em Portomarín e seguimos em frente. Aliás, a palavra merenda, comum no Brasil até poucas décadas atrás – é mantida em pleno uso pelos espanhóis (“merienda”). É bem mais apropriada que o vocábulo lanche, cujo uso alastrou-se pelo Brasil, copiado da palavra “lunch”, que significa almoço, em inglês. Substituímos a merenda pelo almoço.
A uns 5 km adiante, depois de enfrentar um longo trecho em aclive acentuado, na saída de Portomarím, alcançamos Gonzar, um pequenino povoado, onde resolvemos pernoitar.
Ali não havia nenhum comércio, à exceção do bar vizinho ao refúgio, que somente servia “bocadillos”. O albergue era pequeno, mas confortável. Tinha máquina de lavar roupa e o banheiro misto era limpo, apesar de só dispor de meia porta nas duchas, situação que àquela altura já nem despertava atenção.
Ao final da tarde eu e Marlis descansávamos à porta do albergue, quando se aproximaram dois amistosos espanhóis, já conhecidos, fazendo muitas perguntas sobre o Brasil. Resolvi, então, perguntar-lhes sobre as suas procedências.
– Somos catalanes – respondeu um deles, orgulhoso, como todos os naturais da Catalunha, província situada no Sudeste da Espanha, da qual Joan Bueno também é oriundo.
– Eu também – respondi sorrindo.
– ¿Si eres brasileño, como puedes ser catalán? – falou um deles, um pouco espantado.
– Pois é verdade. Nasci em Catalão, uma cidade do Estado de Goiás, na região central do Brasil, que se formou a partir de uma povoação fundada por um espanhol da Catalunha, ao qual deve o seu nome. Os naturais de Catalão são denominados catalanos – respondi, enquanto tentava relacionar interiormente, o caráter destemido do povo da minha terra ao jeito intrépido dos catalães.
– ¿Eres descendente de alemán pero também eres catalán? – cobrou-me Marlis, enciumada, a quem eu havia contado da minha ascendência alemã, por parte de pai.
– Assim é o Brasil – respondi.
Aquele diálogo colaborou para que eu compreendesse melhor as diferenças entre os brasileiros e os europeus, a respeito dos problemas sociais. A nossa multifacetada cultura produz uma miscigenação étnica e cultural inexistente nas singulares culturas europeias. Mas nós podemos neles nos ver, porque a nossa cultura e o nosso sangue, em parte, também são europeus. Eles, entretanto, não podem conosco se identificar. Podem até ser cativados pela intrigante, alegre e sensual mistura brasileira. Apreciam porque é diferente, o que por si só evidencia a ausência de identidade.
E pude entender, também, porque aos europeus parece tão estranha a nossa tolerância para com a miséria que nos cerca, situação que consideram inconcebível. Mas não se julgam obrigados a integrar as minorias miseráveis que lá vivem, pois com elas não se identificam. Da mesma forma que a nossa elite branca não se identifica com os nossos desamparados, mantendo-os marginalizados.
Será uma luta árdua a ascensão dos excluídos. Exigirá, preliminarmente, que se conscientizem de seus direitos, tarefa praticamente impossível enquanto viverem submetidos à miséria. Pois, nessa situação, como afirma Jessé Souza, em A Modernização Seletiva – Uma interpretação do Dilema Brasileiro, Editora Unb, “a pobreza material é acompanhada de uma pobreza simbólica”. O que ele chama de fragmentação da consciência.
Grande parte dos brasileiros identifica-se com a parcela mais sofrida da nossa população. Mas, infelizmente, é insensível à miséria social à qual é submetida, ambiguidade que talvez se origine na nossa própria tolerância racial e cultural. O nosso hábito de aceitar diferenças – uma das características que nos distinguem nesse mundo racista e intolerante – parece inibir um trabalho efetivo de erradicação da miséria no Brasil, pois não nos indignamos com a pobreza com a qual convivemos.
FOTO: Favela brasileira
FOTO: Gueto cigano em Paris
FOTO: Favela de negros em Paris
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr