Memórias de um Peregrino – QUEM SOU EU?

À tarde, em Rabanal, enquanto lia na varanda do albergue, ouvi um sotaque brasileiro na recepção da hospedagem.
Voltei-me e vi um rapaz moreno, que não conhecia. Ele não entrou. Informou-se e seguiu para outro refúgio. Todavia, sua presença provocou um amargo comentário de um outro brasileiro, sentado em uma mesa próxima, cuja presença eu não havia percebido:
— Até aqui me aparecem essas porcarias! — disse ele.
Fiquei indignado com a atitude daquele desconhecido conterrâneo que, a seguir, gastou todo o seu portunhol para explicar aos seus espantados companheiros de mesa, espanhóis, que apesar de ser brasileiro, era filho de castelhanos.
Preferi não polemizar e, mais tarde, até trocamos algumas palavras, quando se apresentou como dirigente de uma organização esportiva do interior de São Paulo e revelou suas dificuldades no Caminho, em razão de fortes dores no nervo ciático.
Seu exacerbado problema de identidade, com certeza bem mais crônico do que o fisico, despertou-me para a questão fundamental que fustiga todos os homens. O grande dilema da vida, a definição que tanto buscamos e da qual tanto fugimos: QUEM SOU EU? Sem uma resposta satisfatória a essa questão, base da personalidade, alicerce do caráter, toda uma vida pode ser em vão. Um imenso castelo pode ruir.
A identificação da sua essência é a maior descoberta que uma pessoa pode fazer. É a chave que lhe pode libertar de todo um acervo cultural de preconceitos, equívocos e mentiras. Livrar-lhe de uma vida de fantasias. Concluir quem ela realmente é.
E a base dessa procura — na verdade um trabalho de reavaliação —, segundo José Antonio Garcia-Monge (¹), começaria pelos desejos (O que desejaríamos ser?), continuaria pelos deveres (O que deveríamos ser?) e terminaria pela definição do que de fato somos.
As respostas a essas simples perguntas podem descortinar um novo mundo. Essa simples descoberta que transforma uma pessoa, revoluciona uma vida, é negligenciada por quase todos nós, relegada a segundo plano até mesmo na educação familiar e escolar. O verdadeiro estudo da vida, capaz de auxiliar-nos a ser pessoas melhores, infelizmente é pouco disseminado. Raras vezes é ensinado nas escolas, não consta do currículo educacional, a não ser em cursos específicos, destinados a profissionais voltados ao tratamento daqueles que não se encontram. Pois esse problema pode se tornar uma doença.
Claro é uma busca interior, pessoal, intransferível, que requer o próprio amadurecimento cronológico. Mas os fundamentos de um processo de autoconhecimento e de crescimento pessoal poderiam ser ensinados sistematicamente nas escolas, nas empresas, nos organismos estatais, nos sindicatos, associações, nas famílias…
O nosso desenvolvimento pessoal, por também ensejar um grande avanço espiritual, sempre ficou sob a responsabilidade das religiões, como se tivesse pouca importância para o nosso cotidiano, para o mundo secular. Como se o crescimento interior fosse um privilégio ou uma obrigação dos que se dedicam à vida monástica.
Conforme observou o Dalai Lama (²), “isso acontece especialmente na sociedade moderna, porque existe uma tendência a aceitar que a questão dos atos salutares e dos prejudiciais — o que se deve e o que não se deve fazer — é algo que se considera pertencer á esfera da religião”. Diz ele ainda que “um problema da nossa sociedade atual é que temos uma atitude diante da educação como se ela existisse apenas para tornar as pessoas mais inteligentes, para torná-las mais criativas. Às vezes, chega mesmo a parecer que aqueles que não receberam grande instrução, aqueles que são menos menos sofisticados em termos de formação acadêmica, são mais inocentes e honestos.”
Muitos agem como se educação e ética fossem temas antagônicos ou conflitantes. E são inúmeros os exemplos de pessoas altamente preparadas e importantes que apresentam sérios desvios de conduta e elementares defeitos de caráter. Quantas vezes ouvimos pessoas se negarem a ceder um milímetro sequer, em um conflito, baseando-se no esfarrapado “eu sou assim”! Quantas vezes nos portamos inadequadamente em nosso trabalho e em nossa família, por total despreparo para sermos um pouquinho mais cooperativos, companheiros ou amigos!
Será que, desde que Caim matou Abel, todo o progresso do homem foi material? Estamos condenados a ser egoístas, invejosos, orgulhosos, intolerantes e mesquinhos? Quantos anos se gasta no aperfeiçoamento técnico ou profissional de uma pessoa, esquecendo-se ou menosprezando o seu aprimoramento humano?
Poucas pessoas obtém algum avanço nessa área e, quando isso ocorre, e por meio de algum investimento próprio, geralmente por meio de instituições religiosas ou similares. As falhas de caráter e os desvio de conduta são aceitos, via de regra, como inerentes à condição humana. Irreversíveis.
Todavia, é impressionante o progresso apresentado pela pessoa que se descobre, que identifica a sua real missão, facilmente percebida pela serenidade e pela segurança que a distingue, pelo carisma que desperta.
Não significa que, após se descobrir, ela deixe de imediato seus defeitos. Mas abandona, paulatinamente, esses comportamentos, pelo simples estancamento da fonte que os supria: a falta de amor! Vai, assim, polindo o seu caráter e a sua personalidade, caminhando decisivamente rumo a uma vida mais plena, feliz e prazerosa.
Como nos ensina Maria Helena Matarazzo (³), “as pessoas precisam arriscar-se a ser elas mesmas para poder se encontrar e matar a sua fome de amor”.
(¹) Camino de Santiago – Viaje al Interior de Uno Mismo, José Antonio Garcia-Monge e Juan Antonio Torres Prieto. Ed. Desclée De Brower, pág. 27.
(²) A Arte da Felicidade, Um Manual para a Vida, de Dalai-lama e Howard C. Cultier, Livraria Martins Fontes, págs. 54 e 57.
(³) Encontros, Desencontros e Reencontros, de Maria Helena Matarazzo, Ed. Gente, pág. 112.
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

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