MULHERES NO CATALÃO DE ANTIGAMENTE

Durante muito tempo, a mulher esteve restrita à cozinha e aos quartos da casa, permanecendo na obscuridade por mais de dois séculos em Catalão. Mesmo na historiografia do município, sua presença constou, quando muito, apenas nos rodapés de livros.

Tal fenômeno se deu, de um lado, por força das próprias instituições. A mulher somente pode votar e ser votada a partir da constituição de 1946, quando Catalão completava mais de um século de exercício eleitoral. De outro lado, havia um código de conduta social pregando que, a mulher não podia se meter em assuntos políticos, devendo ser obediente aos pais e ao marido, com a obrigação de se mostrar dócil, contida, meiga e sempre falando baixo. No todo, regras de uma organização patriarcal, onde ela figurava como simples adereço social.
Evidente que as coisas estão mudando. Nos últimos dois milênios, o mundo desenvolveu sob a orientação do pensamento masculino, alcançando graus de elevado progresso e tecnologia. Entretanto, o crescimento econômico desordenado relegou a plano secundário o equilíbrio do sistema, gerando sérios problemas sociais e ambientais. Assim sendo, cientistas acreditam que, neste terceiro milênio, somente o pensamento feminino seria capaz de implementar ações eficazes com respeito ao meio ambiente, ecologia e inclusão social. Nesse aspecto, como escreveu Fritjof Kapra, estaríamos agora em um “ponto de mutação” onde a alma feminina estaria assumindo liderança frente à tradicional  mentalidade masculina.
Mas, afinal, que diferenças fundamentais existem entre o modo de pensar do homem e o da mulher?
Por princípio, acredita-se que o homem seja movido pela razão e a mulher pela emoção. Enquanto ele raciocina e planeja, ela age por cordialismo e é auxiliada pelo senso da intuição. Ou seja, a mulher costuma decidir pelo coração, pelo sentimento e não pela fria lógica do raciocínio.
Cordialismo não significa cordialidade, bondade. Pelo contrário. Para Nietzsche, enquanto um homem “gosta ou não gosta”, uma mulher “ama ou detesta”. Simples assim, o que ela não ama, ela odeia. Mais ainda, o homem padece de um viés de tolerância e, por mais esforço que faça consegue ser mau, malvado. Enquanto a mulher, atada ao cordialismo, costuma ser perversa por natureza, desconhecendo o receio ou o medo.
Sob a luz de tais atributos, compensa revisitar alguns episódios históricos, em que mulheres se destacaram nos quadros da sociedade patriarcal em Catalão. Neste aspecto, o texto ganha ares de ensaio historiográfico e não exatamente de simples crônica do passado.
No interior mais isolado do país, três características marcaram a antiga sociedade patriarcal: a defesa da família, a defesa da propriedade e a busca pelo poder político local. Foi um período bastante violento em que a mulher esteve presente, embora suas ações não tenham sido reconhecidas e, muitas vezes, apagadas ou condenadas.
Apontam memorialistas que, no século XIX, dois bandos armados assolaram o município de Catalão: o da Caetaninha do Rio Verde e o do Índio Afonso. O primeiro atuava na grande região do São Marcos, distrito de Santo Antônio do Rio Verde. O segundo atormentava os ribeirinhos do Paranaiba, moradores de Olhos D’água e da Pedra Branca.
Ambos os chefes bandoleiros (Caetaninha e Índio Afonso) tinham armas, munições, contratavam jagunços, encomendavam tocaias, defendendo suas respectivas famílias e interesses fundiários. Nada diferente do que faziam os velhos coronéis da época, que não recebiam qualquer condenação pelos seus atos. Porém, numa sociedade patriarcal, evidente que, uma mulher ou um indígena não obteriam o mesmo tratamento concedido aos fazendeiros.
Na verdade, todos tinham os seus motivos. O Índio Afonso era descendente dos caiapós que habitaram a região do Paranaiba por inúmeras gerações. Não entendia o fato de aquelas terras serem divididas em sesmarias, negociadas e ocupadas por novos proprietários. Foi condenado pelos seus atos, mas acabou sendo condecorado pelo escritor Bernardo Guimarães, no livro “O Índio Afonso”, que viu nele um herói e não um bandoleiro.
Com relação à Caetaninha, diziam que era chefe de um bando que “assolava” a região de Santo Antônio do Rio Verde. Todavia, pelos indícios da memória, ela nunca saiu de seu casarão, onde morreu lutando em defesa de familiares e da propriedade que herdou do pai. Senão vejamos.
Há cerca de 170 anos, a adolescente Eulália Caetano  Mendes residia com o pai em um casarão no distrito de Santo Antônio do Rio Verde. O local era uma pensão que recebia tropeiros e boiadeiros de passagem para Formosa dos Couros, Paracatu, Triângulo Mineiro e São Paulo. Foi nessa época que Eulália experimentou o amor proibido, apaixonando-se por um padre, o vigário de Catalão, cônego Luiz Antônio da Costa. A paixão resultou em gravidez inesperada e em uma união indesejada. A moça se casou, depressa, com um homem mais velho, do próprio distrito, que assumiu a criança como se fosse dele, evitando mexericos sobre o relacionamento com o padre. Com o marido, teve ainda mais dois filhos.
Dada a morte do pai, Eulália Caetano assumiu todas as responsabilidades da pensão. Ao longo do tempo foi adquirindo armas, munições e contratando jagunços, mantendo-se sempre cercada pelos filhos. Vivia como um “coronel” da época: poderosa, enérgica, além de sedutora. Contavam que ordenava tocaias e execuções contra qualquer um que contrariasse seus interesses.
Em certa ocasião foi acusada de mandante do assassinato de Jerônimo Cândido de Oliveira, um fazendeiro da região. O irmão da vítima fez denúncia na delegacia de Catalão e foram enviados três soldados para buscá-la e esclarecer os fatos. A Caetaninha não se entregou,  houve tiroteio na pensão e os soldados foram mortos. Ela retirou a farda dos corpos, arrumou cuidadosamente em um pacote e mandou devolver os uniformes para o chefe de polícia de Catalão. O delegado recebeu o embrulho como um recado de humilhação e denunciou o ocorrido ao governo provincial.
Veio um destacamento militar, direto da capital para o distrito, com a missão de prender a Caetaninha do Rio Verde. Mais uma vez, intenso tiroteio ocorreu na pensão e ela presenciou jagunços e familiares sendo abatidos pelos soldados. Quando um dos seus filhos tombou, varado de balas de carabina, ela apanhou um lençol branco e acenou pela janela. O tiroteio cessou, Caetaninha se enrolou no pano branco, abriu a porta e se entregou. Mas, quando ficou de frente para o comandante da tropa, matou-o friamente a tiros, sendo executada, de imediato, pelos soldados.
Caetaninha, com suas armas, munições e jagunços   agia exatamente como um dos coronéis daquela época. Porém, dentro dos parâmetros de uma sociedade fortemente patriarcal, este não seria certamente o papel da mulher.
Ainda no século XIX aconteceu um episódio que se tornou bastante conhecido: o assassinato do  coronel Paranhos, em pleno dia, no centro de Catalão. Foi executado no meio da rua, sob forte tiroteio que partia de residências vizinhas e que durou dois dias e duas noites.
Durante horas, ninguém se aventurava a recolher o corpo do coronel caído no meio da rua. Até que, duas de suas filhas abriram a porta do sobrado e, de forma altiva e decidida, caminharam até o corpo do pai e o arrastaram para a residência. O tiroteio prosseguia, mas os jagunços não atiraram nas moças por piedade ou, quem sabe, admirados pela coragem delas. As duas mulheres ainda voltaram e recolheram o sangue do pai na poeira da rua, porque havia um costume, na época, de se profanar o sangue das vítimas cuspindo ou urinando sobre ele.
Na noite do segundo dia, o ambiente estava insuportável no interior do sobrado, com o corpo do velho senador estirado em um sofá. Mais uma vez, a decisão partiu de suas filhas. Limparam o cadáver, vestiram-no com o uniforme do exército nacional, colocaram em uma rede, levaram para o fundo do quintal, pularam o muro e carregaram-no furtivamente para o cemitério local. Assim, foi sepultado em cova rasa, numa madrugada chuvosa, sem velório e testemunhas, o ex-senador e coronel Antônio da Silva Paranhos.
Cumprida a tarefa, as moças retornaram ao sobrado que continuava no centro do tiroteio. Tais fatos foram narrados em crônicas  pelo próprio Ricardo Paranhos, filho mais velho do político assassinado.
O desdobramento desta luta política ocasionou dezenas de novas vítimas ao longo do tempo. Uma mulher da família Salviano, por exemplo, teve a filha raptada  por um jagunço e nunca mais foi vista. A menina tinha menos de três anos de idade e foi levada enquanto a mãe lavava utensílios domésticos no rego d’água da fazenda. Assim como a mãe, toda a família do major Salviano da Costa passou a vida inteira buscando o paradeiro da criança raptada. Em vão.
Nas fazendas e na cidade, o protagonismo de algumas mulheres merece, de fato, ser resgatado. É o caso de Ana da Silva Teodoro, apelidada de Dona Inhana. Ela se casou com um fazendeiro da região de Olhos D’água e, por ser muito enérgica, ganhou fama de mandar no marido a ponto de ser apontada como responsável por algumas tragédias familiares.
Inhana era neta do saudoso coronel Marianinho dos Casados e contraiu núpcias com José Teodoro, apelidado de Zé Carretel. Quando teve seu pai assassinado, a mulher exigiu do marido que perseguisse e executasse o criminoso. Zé Carretel obedeceu à esposa, contratou jagunços e não teve mais paz. Andava somente armado e com escolta.
Um belo dia, Zé Carretel deu uma surra numa prostituta em Catalão, enquanto fazia compras para a fazenda. A mulher era amante do Intendente de Catalão, Salomão de Paiva, e a coisa se complicou. Logo foi procurado por dois homens em sua fazenda. Como ele não estava no momento, foram recebidos por Dona Inhana.
Enquanto aguardavam o fazendeiro, Inhana foi pegar um frango no quintal e descobriu duas carabinas escondidas. Sinal que os visitantes vieram para eliminar o seu marido. Com a ajuda de empregados rendeu e amarrou os dois desconhecidos. Quando Zé Carretel chegou, ouviu a confissão dos jagunços. Vieram a mando do Intendente executar o fazendeiro. Mas, que estavam arrependidos e prometeram ir para o Triângulo Mineiro e nunca mais pisar em Catalão.
Antes que o marido se apiedasse, Inhana com o filho no colo, decretou: “Você mata ou eu mato?” Zé Carretel, então, atirou à queima roupa nos dois e os enterrou no quintal da casa, jogando as carabinas no açude. Nem assim, Dona Inhana se conformou. Enviou dois empregados para matar o Intendente de Catalão, mas que não lograram êxito: foram assassinados à entrada da cidade, na travessia do córrego do Almoço.
Zé Carretel não saía mais durante o dia e passou a viver cercado de seguranças. Nem dos trabalhos na fazenda ele participava.
Dona Inhana não concordava com isso. Na época da colheita de milho, incentivado pela mulher, Zé Carretel foi trabalhar, sendo executado no milharal por jagunços de tocaia. Dona Inhana mandou erguer uma enorme cruz no local onde o marido tombou e assumiu toda a administração da propriedade.
Na cidade também a violência esteve presente no Catalão da década de 1920. Uma das vítimas foi Maria Benvinda de Araújo, moça que nasceu na fazenda Pé do Morro e se casou com um carpinteiro português, Joaquim de Araújo. Moravam na cidade, a beira do ribeirão Pirapitinga, quando Joaquim resolveu construir uma ponte para travessia do córrego onde somente existia uma pinguela. Foi morto por desentendimentos na cobrança de pedágio bem na travessia da ponte.
Maria Benvinda ficou viúva bem nova e nunca mais tirou a negra vestimenta do luto. Continuou sendo uma pessoa respeitada e conhecida pelo apelido de Dona Rola, vivendo no sobrado ao lado da ponte. Dedicou-se a ajudar pessoas e entidades, como as madres agostinianas espanholas que aprenderam com ela a culinária e os costumes locais. Tornou-se um exemplo de religiosidade, porém, nunca mais comungou por não ter perdoado os assassinos do seu esposo.
Foram inúmeros os episódios em que as mulheres foram protagonistas ou vítimas na era da violência em Catalão.  Na maioria das vezes demonstraram coragem admirável.
Quando retiraram o farmacêutico Antero da cadeia, em 1936, e começaram a martiriza-lo pelos caminhos da Rua da Grota, duas mulheres tiveram a coragem de condenar o fato, enfrentando a turma de jagunços. Primeiro foi a mulher do comerciante Sebastião Caiado que, próxima à cadeia, ousou discursar que o ato era de extrema covardia e inteiramente condenável. À medida em que ofendia a turma enfurecida, seu marido a arrastou para dentro de casa.
Logo depois de executarem Antero, os criminosos quiseram se embriagar e comprar munições no armazém do Farid Miguel Safatle. Ele não estava em casa. Mas, sua mulher, Dona Nazira, sozinha, com uma cartucheira nos braços, enfrentou os jagunços na porta do armazém: “O primeiro que entrar, morre aqui mesmo!” Acabaram indo beber em outro lugar.
Enquanto isso ocorria, começava uma outra era e Catalão, quando as mulheres se destacaram na educação, nas artes, no trabalho comunitário, na política e na literatura. Esta será a segunda parte de um novo texto sobre o assunto.

 

Por Luís Estevam

Mulher rural em Catalão. Desenho de Edson Democh. Mulher rural em Catalão. Desenho de Edson Democh.
Menina-moça nos primórdios de Catalão. Desenho de Edson Democh.