Memórias de um Peregrino – O PALÁCIO DE GAUDÍ

O novo curativo funcionou muito bem e, no dia seguinte, fiz uma caminhada de quase 35 km. Estava com um fôlego raro, talvez pensando em rever a sevilhana… No trecho, passei por Hospital de Órbigo, onde fotografei a famosa ponte de pedras, sobre a qual Don Suero de Quiñones venceu 68 cavaleiros em corridas de lança, segundo a lenda. Desafiava todos os cavaleiros que quisessem atravessar a ponte a enfrentá-lo, ou, então, depositar uma luva em sinal de covardia…
Alcancei Astorga às 14h, depois de cruzar uma meseta árida, com um extenso platô no seu topo. Astorga é uma cidade de cerca de 11 mil habitantes, com mais de 2 mil anos de história, importante desde o período da ocupação romana. Conserva várias ruinas e muralhas daquela época e ainda se vêem escavações no próprio centro histórico da cidade.
Após o banho, procurei o Centro de Salud, preocupado com a situação do meu pé direito. O médico, educado e prestativo, examinou meu ferimento e, enquanto me distraía com algumas perguntas sobre o Brasil, simplesmente arrancou de um só golpe o curativo, com pele e tudo. Passado o susto, mandou um auxiliar fazer um novo curativo e recomendou-me suspender a caminhada, até a melhoria da situação. Mas, pressentindo que a sua orientação não seria atendida, resmungou alguma coisa sobre a teimosia dos peregrinos e orientou-me a trocar diariamente o curativo, após lavar o ferimento e usar uma pomada, que receitou. Agora, tinha uma ferida aberta, mais dolorida, mas sem o receio de uma complicação.
O centro histórico da cidade estava tomado pela população, que comemorava o dia do padroeiro local. Vi comemorações de um casamento, espetáculo musical e danças típicas. Visitei um belíssimo museu, chamado Palácio Episcopal, projetado por Antoni Gaudí, o famoso arquiteto modernista catalão, consagrado por suas obras em Barcelona. Uma construção espetacular, de encher os olhos.
Mas não me demorei muito por ali, preocupado com o ferimento e com as minhas possibilidades de prosseguir a viagem.
Antes da partida, na manhã seguinte, gastei um bom tempo na preparação do curativo, com bastante algodao, para amortecer os impactos.
Ainda estava escuro quando, poucos minutos depois de iniciar a caminhada, experimentei uma situação realmente inusitada e ameaçadora. Na mesma rua do albergue, uma boate ainda funcionava a pleno vapor, cujo som ouvi de certa distância. No momento em que me aproximava da casa noturna, um grupo de rapazes e moças, possivelmente excitados pelo álcool, deixava o local. Como fazia toda madrugada, eu levava o cajado na posição horizontal, para não perturbar os moradores.
O grupo ocupou toda a calçada e alguns de seus membros começaram a gargalhar desafiadoramente ao me verem, talvez por conta da minha indumentária, estranha demais para quem saía de uma boate.
Mantive o ritmo e passei a usar o cajado na posição vertical, batendo-o no chão enquanto caminhava, sem me esquivar. Eles se calaram, abriram um corredor e eu passei decidido no meio do grupo, sem um comentário ou uma gargalhada sequer. Não olhei para trás, mas durante alguns instantes ainda temi por um ataque. Sem ser perturbado, segui satisfeito, ouvindo as estridentes batidas do meu cajado no calçamento de pedras, que ressoavam por aquelas milenares ruas estreitas. Talvez a lembrar Dom Quixote, o atacante de dragões imaginários.
Antes de deixar a cidade, porém, por duas vezes, fui interrompido. Eram as dores no pé direito, já habituais companheiras de viagem, exigindo ajustes no curativo. Essas paradas eram muito aborrecidas: descarregar a mochila, apanhar o material para curativo, tirar o tênis, a meia… depois, refazer todo o processo inverso. Perdiam-se minutos preciosos, justamente no melhor horário para se caminhar.
Mas a inesquecível Astorga ainda me reservava outra surpresa: perto da saída da cidade fui atraído por um cheiro irresistível. Era uma “panaderia”, já aberta, coisa rara naquelas cidades, onde comprei uma deliciosa bisnaga de pão, recém-saída do forno, que, feliz da vida, fui saboreando pela estrada afora. Quanta plenitude numa simples bisnaga de pão!
A rota era pouco ondulada, sem maiores dificuldades. Mas, a partir das 11h, a temperatura elevou-se um bocado. Caminhava com receio, pois, em boa parte do trecho, segui por uma estrada asfaltada, sem acostamento. Ficava procurando trilhas pelo mato — numa vegetação que me lembrava o cerrado brasileiro —, com receio de ter problema novamente com o aquecimento dos tênis.
Parei algumas vezes para ajustar o curativo, mas, por volta das 13h, alcancei Rabanal del Camino, um “pueblo” de apenas 50 moradores. Entretanto, Rabanal dispõe de três bons albergues, pois fica aos pés de uma montanha onde se situa o ponto mais alto do Caminho de Santiago. Obstáculo que desencoraja os peregrinos a se aventurarem pela serra antes de fazer um bom repouso.
Cheguei antes da “siesta” e pude almoçar em um bom restaurante, onde fui atendido por uma menina que havia morado em Portugal e, em decorrência disso, falava português, língua muito útil naquelas paragens tão visitadas por brasileiros.
No bar ao lado, os espanhóis acompanhavam ruidosamente um jogo de futebol do Deportivo La Coruña contra o Barcelona, que também chamam de Barça. Assim mesmo, com o “c cortado”, como eles designam o nosso cedilha, letra também usada no idioma catalão. Como os brasileiros, os espanhóis são fanáticos por futebol, afinidade que facilita bastante o relacionamento entre nós e explica a grande admiração que sentem pelos nossos craques, que realmente idolatram.
FOTO: A Ponte de Pedras de Hospital de Órbigo.
O peregrino com traje completo: cajado, chapéu, cantil, mochila e esteira (enrolada). Pendurada no peito, a vieira, símbolo do Caminho de Santiago
FOTO: O Palácio Episcopal de Antoni Gaudí, em Astorga. Detalhe para o curativo no meu pé direito
FOTO: A Catedral e o Palácio Episcopal, em Astorga
FOTO: O Palácio Episcopal, em Astorga
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

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