A Fibra De Uma Mulher Catalana

Em Catalão vive uma senhora que enalteceu sua terra natal, atuando no mundo do cinema e na dramaturgia em São Paulo. Somente não teve uma carreira de fama e glória, como atriz, porque resolveu voltar para Catalão e levar uma vida interiorana. Ainda assim, Marlitt de Mendonça Netto Fayad participou ativamente dos movimentos culturais na cidade, foi professora de artes cênicas, presidente do Conselho Municipal de Cultura, publicou crônicas, inúmeros poemas, e atualmente ocupa a cadeira número 01 da Academia Catalana de Letras.
A vida de Marlitt de Mendonça Netto lembra o enredo de uma peça de teatro. Viveu um conto de fadas na juventude, afastou-se do mundo artístico no início de uma carreira promissora, teve que enfrentar adversidades e tragédias no seio familiar, sem nunca perder a serenidade, a elegância, a classe e a altivez. Uma história recheada de alegrias, ironias, dramas e contrariedades, tal como uma genuína composição teatral.
Marlitt nasceu em agosto de 1934, filha do jovem fazendeiro João Netto de Campos e da estudante Maria Isabel de Mendonça. O casal teve quatro filhos: Mário, Yedda, Álvaro e Marlitt. Seu pai, voltado para atividades rurais, ainda não militava diretamente na política. Sua mãe, fascinada pelas artes, fazia parte da intelectualidade catalana. Era amiga do poeta Ricardo Paranhos e participava de suas serenatas e encontros literários. Pertencia a um seleto grupo de conterrâneos que gostava de leitura e encomendava livros de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Na época, os romances da escritora alemã, E. Marlitt, eram lidos e comentados nas rodas literárias de todo o Brasil. Eugenie Marlitt, um pseudônimo utilizado pela autora alemã nas publicações, apontava para a necessidade de independência intelectual e social das mulheres, obtendo a simpatia de milhares de leitoras. Talvez, por isso, Isabel de Mendonça Netto tenha escolhido o nome de Marlitt para sua filha mais nova.
Foi nesse ambiente cultural que viveu, quando criança, Marlitt de Mendonça Netto. Declamava versos, desde menina, tendo o pai como seu maior incentivador. Aos cinco anos de idade, participou de uma peça teatral, apresentada debaixo de uma mangueira, no quintal de uma casa em Catalão, adorando os aplausos recebidos e descobrindo, precocemente, a sua vocação para a dramaturgia. João Netto, entusiasmado com a filha, passou a lhe exigir declamações, inclusive, queria que memorizasse o longo poema “Navio Negreiro” de Castro Alves.
Marlitt começou seus estudos na escola Dona Iayá, em Catalão, depois de ter morado algum tempo na fazenda dos pais, na região da Mata Preta. Mas, logo foi levada para São Paulo, onde continuou a formação educacional, residindo com sua avó materna. Foi quando, na metade da década de 1940, sofreu anemia e foi enviada para a casa dos pais.
Nessa época, João Netto estava morando com a família em Uberaba, negociando gado zebu, onde ficou até ser convidado para candidato a prefeito em Catalão. Na cidade de Uberaba, Marlitt ficou por um demorado ano, recuperando-se da anemia, e logo depois regressando a São Paulo. No ano seguinte, seus pais também voltaram a residir em Catalão.
A jovem Marlitt, a partir de então, passou a viver um dilema. O seu espírito artístico estava em São Paulo, ambiente favorável ao cultivo da intelectualidade e cultura. Todavia, o seu coração ficara em Catalão, onde estavam suas raízes e a família que atuava na política local. Por esta razão, passou a adolescência toda em constantes idas e vindas entre a capital paulista e a cidade de Catalão.
Quando seu pai foi eleito para a prefeitura, veio residir em Catalão, em 1948, estudando por quase dois anos no colégio Mãe de Deus. Mas, a vida artística cobrava sua participação. Retornou a São Paulo, ingressando no colégio Osvaldo Cruz, para término da oitava série. Foi escolhida oradora da turma e preferiu um vigoroso discurso, de apelo político, o que desagradou, em muito, a direção da escola. A sua personalidade marcante e apego a ideias próprias começaram a despontar ainda na adolescência.
Mudou de escola. Passou a estudar declamação no colégio Rio Branco, a pedido do pai, mas sua vocação era mesmo o teatro. Apesar de ainda não ter maioridade, inscreveu-se no curso de arte dramática, enfrentando uma rigorosa seleção com dezenas de candidatos.
O catalano Roberto Rocha publicou uma entrevista, que fez com Marlitt, em 2009, onde narra, com detalhes, o seu ingresso na arte dramática em São Paulo. Conta ele que, “Marlitt passou no primeiro teste que fez na Escola de Arte Dramática, mesmo sendo menor de dezoito anos, idade mínima exigida. Seu teste foi uma cena do ‘Amor de Castro Alves’, de Jorge Amado, com réplica do ator Armando Pedro. Foi aprovada, entre tantos, para uma das 25 vagas existentes. Recebeu apoio de toda a família”.
Roberto Rocha também registrou o início da carreira de Marlitt, frisando: “Seu primeiro trabalho profissional no teatro foi a peça ‘Visita de Pêsames’ em que fazia o papel de uma viúva ingênua. Marlitt, ainda ingênua, pois só tinha 18 anos, apesar de não entender bem o personagem, o representou dando-lhe suas próprias características, a seu jeito meio ingênuo. Foi um grande sucesso. Foi considerada uma revelação. Alguns anos depois é que ela soube que a peça tinha censura para dezoito anos”.
Na escola de arte dramática, Marlitt passou os melhores anos de sua vida, confidenciou mais tarde. Foram quatro anos de intensa atividade, quando vivenciou o mundo artístico e intelectual da época, sendo amiga de Amácio Mazzaropi, Anselmo Duarte, Sérgio Cardoso, Luís de Lima e Leonora Amar, entre outros. Participou da peça “O Contratador de Diamantes”, do filme “Veneno” (de um diretor italiano), sendo também convidada para atuar no filme “O Cangaceiro” (de Lima Barreto), declinando o convite. Gostava mesmo era do teatro.
Na época, residindo em São Paulo, Marlitt fazia parte da elite da dramaturgia brasileira. Representou o papel principal em “O Escriturário”, trabalhou na produção de “O Diletante”, “A Família e a Festa na Roça”, “O Inglês Maquinista” e outros mais. Viajou com o grupo teatral para Belo Horizonte, cumprindo temporada, além de várias cidades no interior paulista.
Em 1954, aguardava o término da construção do teatro Sérgio Cardoso, onde seriam apresentadas três peças ensaiadas pelo grupo do qual participava. Sentia-se feliz e realizada. Apenas com saudades de Catalão e da família. Jamais iria imaginar que a sua vida iria mudar totalmente antes que o ano findasse.
Catalão, na década de 1950, vivia os anos dourados. Os moradores criaram um espaço de diversão onde toda a população comparecia e se alegrava na Praça do Jardim. Havia o Cine Real, a Panificadora São José, o Bar do Zé Pedro (depois, do Irapuan), o Bar do Coreto, a Churrascaria Kambota, o Bar das Vitaminas e os clubes sociais do Crac e Treze de Maio. Os jovens da cidade gostavam de desfilar na praça, ir às sessões de cinema e dançar nos bailes das imediações. Foram anos memoráveis, em que havia interação e proximidade social das diversas camadas da população em um só espaço.
Em outubro de 1954, no intervalo de suas apresentações, Marlitt veio a Catalão para rever os familiares e votar para presidente. Era época da Festa do Rosário e, em uma noite no ranchão, através de “correio elegante”, aproximou-se do jovem William Fayad, iniciando um romântico flerte.
A consequência de tudo, Roberto Rocha muito bem resumiu: “No auge de uma promissora carreira artística, no final do quarto ano da Escola de Arte Dramática, com várias peças preparadas, quase noiva de Paulo Antônio Saldanha da Gama, de tradicional família paulista, deixa São Paulo. Rompe com sua vida amorosa e artística, vem definitivamente para Catalão”.
Se Marlitt era feliz com seus projetos em São Paulo, agora tinha tudo para viver um conto de fadas em Catalão. Seu pai, João Netto, havia cumprido o mandato na prefeitura e sido eleito deputado estadual. Seu tio, Cyro Netto, era o prefeito da cidade e o seu namorado, William Fayad, era um jovem médico, a quem o pai, empresário Nasr Faiad, havia prometido construir um hospital, para que pudesse exercer, em condições adequadas, a medicina em Catalão.
Durante os anos de namoro e noivado com William, Marlitt passou a dar aulas no colégio Mãe de Deus, organizando um grupo local de teatro. Dirigiu e atuou na peça “O Clube de Surpresas”, apresentada no Cine Real, em “A Falecida Senhora Minha Sogra”, com a participação de Paulo Fayad e na “Pedreira das Almas” sob a direção de Edson Democh e com participação do jovem Adib Elias Júnior, no papel de um sargento da polícia. Pela primeira vez se organizou um elenco especializado de teatro em Catalão, voltado para estudo e reprodução de peças famosas.
Com isso, Marlitt inaugurou, na cidade, a cultura da dramaturgia e da encenação. Abriu-se uma época áurea para o teatro genuinamente catalano, com a inclusão de profissionais liberais, estudantes e até mesmo homens públicos. Todos queriam participar e Marlitt se tornou musa na arte cênica regional. Sentia-se feliz no pequeno mundo artístico que havia ajudado a criar.
Depois de três anos de relacionamento amoroso, William e Marlitt marcaram a data do casamento, que se realizou em 1958. Uma festança de vários dias, programada por seu pai, que aconteceu em diferentes locais, contando com participação maciça da comunidade catalana. No primeiro dia, houve recepção e baile na sede social do Crac. No segundo, a festa se deu no Clube dos Operários e, por fim, no Clube Treze de Maio, onde os noivos foram exaustivamente aclamados.
Catalão estava em festa. Foi o ano em que se inaugurou o Hospital Nasr Faiad, que iniciou sob a direção dos médicos William Fayad e Jamil Sebba. Enfim, o município tinha seu próprio hospital. A Santa Casa estava ainda em construção e somente seria inaugurada no ano seguinte.
Em 1959, Catalão comemorou seu primeiro centenário de emancipação. Marlitt participou ativamente das festividades e da extensa programação elaborada pelo prefeito Jacy Netto. Organizou apresentações cênicas no colégio Mãe de Deus, no clube do Crac e no Cine Real. Assim, foi se tornou uma valiosa referência artística na terra natal.
Na década seguinte, com três filhos pequenos, dedicou-se somente ao lar e à direção do grupo teatral que havia criado. Mas, em 1968, padeceu de sua primeira adversidade. Perdeu a filha caçula, de quatro anos de idade, que sofreu leucemia. A menina, Maria Isabel, era inteligente, esperta, amada e admirada pelas duas famílias, Netto e Fayad.
Marlitt conheceu a dor profunda de uma perda familiar. Contudo, no ano seguinte, o nascimento de sua filha, Maria Odete, preencheu o vazio e amenizou o enorme sofrimento. Também colaborou o fato de seu pai, João Netto, ter sido eleito novamente, em 1969, para a prefeitura de Catalão.
Por ironia do destino, alegrias e tristezas mesclavam a vida de Marlitt Netto Fayad. João Netto assumiu como prefeito em 1970, porém, ela nem pôde devidamente comemorar. Seu marido, William Fayad, foi vítima de um ataque cardíaco, falecendo aos 43 anos de idade em agosto. Ficou viúva aos 36 anos anos de idade. Nunca mais se casou.
Com a morte da filha e do marido, em tão curto espaço de tempo, Marlitt ficou sem chão. Aos poucos foi se dedicando à literatura e à política na busca desesperada de eliminar o sofrimento. Juntou-se a Cornelio Ramos, Antônio Chaud, Júlio de Melo, César Ferreira e Jamil Sebba, em 1973, na criação da Academia Catalana de Letras, sendo escolhida para ocupar a primeira cadeira da entidade.
De outro lado, passou a militar na área de frente da política local. O seu carisma era reconhecido, tanto que, alguns políticos antigos, da oposição, propagavam que o herdeiro político de João Netto nascera mulher. Em sua casa, Marlitt recebia moradores, anotava seus pedidos e encaminhava ao setor público. Foi presidente do PMDB, mas nunca aceitou a inclusão do próprio nome para disputar eleições, embora tenha sido indicada algumas vezes.
Com o falecimento do pai, João Netto, em 1996, Marlitt foi se dedicando cada vez menos à política e cada vez mais à literatura. Voltou-se para a vida cultural de Catalão e, em 2001, ajudou a fundar o Conselho Municipal de Cultura, assumindo a presidência da entidade. Entre outras realizações, participou do tombamento da estação ferroviária e de sua transformação em museu.
Não obstante, a vida ainda lhe traria outra tragédia: em 2008, perdeu seu filho primogênito, William, um filho amado e companheiro.
Diante de tanto drama e adversidades, melhor terminar com as palavras de Roberto Rocha: “Marlitt, uma mulher forte, culta, educada e acostumada a grandes emoções, permanece em Catalão, entre livros, o amor do filho Maurinho, da filha Maria Odete e dos netos. Respeitada e amada por todos os catalanos, transmite, com sabedoria e classe, suas experiências e seu conhecimento”. Um enredo de peça teatral.
A atriz Marlitt de Mendonça Netto na adolescência. (Acervo de Sylvio Netto Lorenzi)
Os filhos de João Netto e Isabel de Mendonça: Mário, Yedda, Marlitt e Álvaro. (Acervo de Sylvio Netto Lorenzi)
Casamento religioso de Marlitt Netto e William Fayad em 1958. (Acervo de Silvio Netto Lorenzi)
O médico William Fayad e seu filho primogênito, William. (Acervo de Sylvio Netto Lorenzi)
    Marlitt Netto, ao centro, com Paulo Fayad, Antônio Braga, Celi de Paiva e Jales Rabelo, em exibição teatral. ,(Acervo de Sylvio Netto Lorenzi)
Marlitt Netto Fayad em foto de 2009. (Publicação de Roberto Rocha)
Luís Estevam