Memórias de um Peregrino – ENFRENTANDO O CEBREIRO

Enquanto percorria as trilhas da montanha, surpreso, vi um idoso casal preparando o solo para o cultivo, num platô da serra, com o auxílio de antiquados arados, puxados por bois. Encontrar, na Europa, aquela prática medieval era uma coisa que eu nunca poderia imaginar, não obstante seja ainda comum nas regiões mais pobres do Brasil. Viviam isolados no pequeno pueblo próximo à lavoura, onde parece que o tempo parou, impedindo o seu progresso.
Após o platô, descendo a serra por uma encosta com forte declive, a trilha retornou ao vale. Durante a descida, quase fui surpreendido por um grupo de ciclistas que trafegava em disparada no mesmo sentido. Era uma turma de jovens peregrinos, exercitando seus dotes no “mountain bike”. Como a trilha era tortuosa, um verdadeiro zigue-zague serra abaixo, somente a poucos metros perceberam a minha presença, o que, por pouco, não provocou um acidente, pois o piso de brita da trilha não permitiu que freassem. Alguns perderam o controle da bicicleta, com a derrapagem, entrando pelo mato, enquanto eu não sabia para onde correr. Foi por um triz.
Almocei num bom restaurante, em um dos vários “pueblos” existentes no vale, à margem da estrada, acompanhado por dois peregrinos de Sevilla, com os quais havia me encontrado outras vezes. Simpáticos, um deles era advogado (ou abogado, como os espanhóis chamam seus causídicos). Descansei bastante, após o almoço, e parti, enfim, para o derradeiro combate daquela jornada: enfrentar o Cebreiro.
Eram 16h quando, numa fonte situada a poucos metros do início da subida, encontrei Joan Bueno e as brasileiras Iasmim e Lúcia. Elas estavam inseguras, pensando em pernoitar por ali e subir somente no dia seguinte. Consultado, eu as convenci a prosseguir. Joan preferiu descansar um pouco mais. Iniciamos, os três, a subida da famosa montanha, que tem um aclive muito forte, realmente. Nada a ver com alpinismo, conforme alguns até imaginam. Mas montanhismo, sim.
Foram três horas de penosa subida. Muito esforço, muito suor, bastante apoio do cajado, várias paradas para matar a sede e apreciar a paisagem espetacular.Tiramos fotos e conhecemos alguns pequenos povoados encravados na montanha.
Ao parar numa fonte, em Herrerías, perguntei a uma mulher a direção correta a seguir, para alcançar o Cebreiro.
— Siga arriba! — repondeu-me ela, apontando a trilha, num inconfundível sotaque português, para mim o primeiro sinal de chegada à Galícia.
Ao aproximarmos de um outro povoado, Laguna, numa trilha que circundada um morro, encontramos uma boiada vindo rapidamente em sentido contrário, tocada por um homem. Eram umas trinta cabeças, mais ou menos dóceis. O problema era que a trilha era estreita, mal comportando dois animais, simultaneamente. Como o gado não se declinou a nos oferecer passagem, fomos obrigados a bater em retirada. As mulheres, rapidamente, subiram no barranco, enquanto eu me dependerei nuns arbustos, do lado da ribanceira, depois de quase ser atropelado.
A uns 2 km do topo, encontramos o marco divisório indicando o início da Galícia, uma das mais belas regiões da Espanha. O topo da serra já estava à vista. Mais uma hora de caminhada e vencemos a mais cansativa e famosa etapa da viagem. O dia todo subindo e descendo serras, num percurso de 28 km. Foi um duro teste para a minha resistência física, que nem se comparava à do início da caminhada.
O Cebreiro também é o nome do povoado existente no topo da serra. Ele ainda conserva algumas construções medievais, inclusive as “pallozas”, casas de uma milenar aldeia celta. O seu nome é derivado de zebros, raça de cavalos que existiu na região. O “pueblo” é minúsculo, com cerca de 50 habitantes fixos, mas com grande agitação de turistas e peregrinos. É bem estruturado, possuindo vários hotéis e restaurantes de qualidade. Dispõe de um grande e organizado albergue, mas com quartos pequeninos para o número de beliches que nele se apertam.
Após o banho, sai para jantar com Iasmim e Lúcia. Na verdade, foi uma comemoração. Havia um clima de satisfação, visível nos rostos de todos os peregrinos. O Cebreiro fora vencido e estávamos a apenas 151 km de Santiago.
Na volta do restaurante, em torno de 22h, de bermuda e camiseta, eu tremia e batia queixo de frio, em pleno verão. Afinal, o Cebreiro fica a 1.111 m de altitude.
FOTO: Na subida do Cebreiro, com Yasmin e Lúcia
FOTO: Marco divisório, indicando o inicio da Galícia
FOTO: No povoado do Cebreiro
FOTO: Trilha com forte neblina, na serra