Memórias de um Peregrino – UM SÍMBOLO DO BRASIL

Bem cedo, tomamos o café-da-manhã no próprio albergue e mergulhamos mais uma vez na neblina, com as inevitáveis pausas para Joan fazer seus desenhos. Eu, Joan, Marlies e Stefani seguimos até Palas de Rei, uma cidade de tamanho médio, aonde chegamos por volta de meio-dia. Os demais membros do grupo resolveram almoçar ali, enquanto decidi seguir em frente, pois estava sem fome.
Ainda que se possa dizer que a falta de apetite era verdadeira, acho que ela foi provocada mais pelo meu desejo de rever Dolores, uma linda loira espanhola. Tinha cerca de 30 anos de idade, e eu a conhecera em um bar, em Palas de Rei, enquanto tomava um refrigerante. Ela acompanhava um grupo de 6 crianças, com idade entre 8 e 12 anos, mais ou menos. Oportunista, não resisti e perguntei-lhe se todas aquelas crianças tinham a sorte de ter uma mãe tão linda. Ela, toda feliz, respondeu-me que somente duas eram suas. Jovens peregrinos, acrescentou. Bela peregrina, insisti.
Alcancei-a na trilha e seguimos juntos por um bom trecho, com uma conversa animada. Mas as crianças eram muito lentas e, depois de algum tempo, a minha ansiedade falou mais alto. Resolvi tomar a dianteira. Despedi-me e, mais uma vez, segui sozinho, pesaroso. Eu iria reencontrá-la em Santiago, ocasião em que seus belos olhos verdes não esconderam a decepção que aquele meu gesto havia provocado.
Fiz uma ótima caminhada, num ritmo forte, até alcançar Melide, uma boa cidade, de tamanho médio, já na Província de La Coruña. Apesar do relevo ondulado, consegui andar 32 km desde Gonzar, em alguns trechos com a trilha coberta por bosques. Ao entrar na cidade, perguntei a dois adolescentes onde se localizada o albergue e eles, muito gentilmente, dispuseram-se a acompanhar-me até lá.
Logo descobriria a razão de tanta gentileza: haviam visto a bandeira brasileira na minha mochila e queriam saber tudo sobre o futebol do Brasil. Mesmo não acompanhando futebol assiduamente, tive que honrar a camiseta e explanar longamente sobre a Seleção Brasileira, Pelé, Ronaldinho, Romário, Rivaldo, Bebeto, Djalminha e vários outros jogadores brasileiros, principalmente os que atuavam ou haviam atuado na Espanha.
Claro que também fui cobrado pelo fracasso da Seleção Brasileira na Copa da França, evento que eles lamentavam tanto quanto eu. Sem explicações para aquele fiasco, desci o pau no técnico, claro.
Durante toda a viagem, em várias ocasiões, pude ver adolescente usando a camiseta da seleção brasileira de futebol e, nas primeiras vezes, eu até me aproximava, imaginando tratar-se de algum conterrâneo. Fato que demonstra o prestígio que ainda gozava a nossa seleção, apesar dos maltratos a ela provocados pelos nossos cartolas e técnicos. É o maior símbolo do Brasil no exterior, ao lado de Pelé.
O albergue de Melide, onde me hospedei, era grande e confortável, com banheiros mistos, sem portas nas duchas, à exceção de uma delas, provavelmente reservada para algum usuário mais tímido. Mas a naturalidade era mais abundante. Depois do banho, assisti à missa e fui a um restaurante acompanhado por aqueles dois peregrinos catalães que havia encontrado em Gonzar. Por recomendação deles, experimentei um “pulpo”, nome castelhano para polvo, uma das especiarias da cozinha galega, farta em frutos do mar. Foi aprovado.
No albergue, revi vários outros peregrinos conhecidos, inclusive as curitibanas, mas esperei em vão por Marlies, Stefani, Juan e a bela Dolores, com seu jovem e alegre grupo.
Levantar cedo não estava mais valendo a pena. Fiz isso na manhã seguinte e fiquei um bom tempo aguardando o sol e a neblina liberarem a circulação, o que ocorreu somente por volta das 7h30. Foi uma jornada exaustiva, no sobe-e-desce típico da Galícia, feita apenas com o café-da-manhã, tomado cerca de 10 km após Melide. No horário do almoço não encontrei restaurantes abertos, mas apenas bares, com “bocadillos” e “tortillas”. Adorei a “tortilla” francesa, uma espécie de omelete, que leva batata, ovos e queijo. Mas àquela altura, ao lado do “menu del peregrino”, era o tipo de comida que eu já estava evitando.
O tradicional “menu del peregrino” — sopa, pão, algum tipo de carne, salada, batata frita e vinho, geralmente — é um prato oferecido por quase todos os restaurantes voltados ao atendimento dessa freguesia. Custava por volta de 1.100 pesetas (cerca de 7 dólares), naquela época. Saboroso e farto, além de não ser caro. Mas, depois de vários dias repetindo-o, seria capaz de andar alguns quilômetros a mais para saborear algo diferente, o que não era difícil, pois a cozinha espanhola é bastante variada, apesar de levar menos tempero do que a brasileira.
Naquele dia, como ocorreu tantas vezes, quando encontrei um restaurante razoável, já estava no período da “siesta”. Bem, aí, restou-me aguardar o restaurante reabrir, o que geralmente ocorre por volta das 19h, para servir o jantar. Fiquei lendo após o banho, num bar nas proximidades do albergue de Santa Irene, onde me hospedei.
Enquanto aguardava, vi, com alegria, numa das mesas do bar, a alemã Stefani, acompanhada de Joan Bueno. Descansavam na expectativa de caminhar mais alguns quilômetros naquele dia. Com isso, pretendiam chegar bem cedo a Santiago no dia seguinte, a tempo de assistir à missa do peregrino, celebrada às 12h, diariamente.
Contaram-me que Marlies, lamentavelmente, desistira da caminhada, por conta de sérios problemas com bolhas nos pés. Ela não usava dois pares de meia simultaneamente e sua mochila era muito pesada. Apesar de ser alta, todo aqauele peso tornou-se fatal. Foi ótimo revê-los. Depois de meia hora de conversa, seguiram em frente.
Após o jantar, voltei para o albergue, pensando na caminhada do dia seguinte. Eu estava a apenas 18 km de Santiago de Compostela. Nenhum peregrino conseguia disfarçar a alegria e a ansiedade daquele último pernoite antes da chegada. Enquanto o sono não vinha, eu fazia uma retrospectiva sobre tudo o que havia ocorrido na viagem.
Passaram-se 29 dias. Perdera cerca de 3 kg e o hábito de tomar café-da-manhã, além de conseguir passar o dia todo somente com uma refeição. Meu espanhol também melhorara bastante. Mas as principais mudanças seriam de caráter bem mais profundo e eu ainda demoraria a compreendê-las melhor.
Surpreendi-me ao saber que um peregrino, instalado numa cama próxima à minha, estava retornando a pé de Santiago e que pretendia seguir caminhando por mais alguns dias. Não seria possível alcançar sua terra, Barcelona, pois teria de voltar ao trabalho. Mas retornaria a caminhada no próximo ano e pretendia alcançar Roma, segundo disse. Não era o primeiro caminhante que eu via retornando a pé para casa. Depois de um mês no Caminho, o nível de consciência está totalmente mudado e alguns até relutam em deixá-lo.
Habituado ao grande congestionamento dos albergues na última semana, naquela noite estranhei a calma existente no refúgio. Foi-me explicado que terminava, naquele dia (30.08), o período de férias de grande parte dos peregrinos espanhóis que, certamente, programaram a conclusão da viagem para antes daquela data.
FOTO: Pulpo: polvo, uma delícia da culinária da Galícia
FOTO: Melide
FOTO: Trilha próxima a Palas de Rei
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr